sábado, 7 de julho de 2012

Cap III - O Rapto


A alienígena usava um roupão inteiriço vermelho, com uma fila dupla de botões dourados percorrendo a parte da frente de cima a baixo, como se fosse um fardão.

- Sabe bem, Hadros, que não sou desse mundo. Sou do planeta Tatooine com o qual você sonhou. Recebi o seu chamado e vim te buscar. Nasci lá, como um castigo que me foi imposto pelos senhores supremos do universo que quiseram me separar de você. Todos esses anos fiquei atenta esperando o teu chamado, querendo te localizar, me preparando de todas as formas possíveis para saber identificar o teu sinal. Até que recebo uma visita projeciológica sua. Vamos, minha nave nos espera lá fora. Vim lhe buscar para ser meu companheiro numa viagem que faremos para construir o lar que está reservado para nós no planeta distante que estava no teu sonho. Tenho plano pra nós longe daqui, em algum lugar bem distante deste mundo em que vives hoje sem um futuro digno para você.

Antes de continuar, interrompo momentaneamente o interlóquio para caracterizar os personagens envolvidos nessa cena. Susy protagonizou acontecimentos insólitos que se sucederam desde que ela descobriu que havia algo de errado no modelo padrão de funcionamento comportamental dos habitantes de seu planeta natal, por tê-la separado do que ela acreditava ser seu parceiro ideal, colocando-os em dois mundo distintos e distantes cerca de 10 anos-luzes um do outro. Seu suposto amado nasceu em um planeta semelhante à Terra que orbita um sol diminuto na constelação de Carina chamado por vocês terráqueos de NGS 549672, ascensão reta de 13 h e declinação de -60º, enquanto Susy vem da super Terra. Na verdade, de uma lua que orbita este planeta na estrela Gliese, que fica na constelação de Libra a 20,5 anos-luzes da Terra, com ascensão reta de 15,3 h e declinação de -7,7º. Não perca tempo procurando essa estrelinha a olho nu no firmamento, você que me lê. Sua magnitude aparente é maior que 10, o que significa invisível para olhos humanos sem algum aparato ótico auxiliar. Nenhuma correlação, no entanto, com o fato de  que o que os gliesianos mais gostam é se passarem desapercebidos dos grandes holofotes dos centros sociais galáticos, características que eles preservam mesmo depois de irem para um planeta tão fashion como  a Terra. Bem, esses eram os CEPs cósmicos desses personagens quando nasceram. Continuemos, então, de onde interrompemos:

- Fecha essa boca, mulher, que tu tem jeito mesmo de pessoa mandada dos encantamentos. Quem te mandou vir aqui?

- Acabei de te dizer, captei as ondas do sonho que você teve. Estamos marcados para ter uma vida comum no planeta azul de uma estrela amarelada. .

- Os dois sóis de Tatooine devem ter te feito mal, moura sideral. Não me lembro de sonho algum. Não tenho razão alguma para deixar meu planeta. Vivo no planeta com melhor qualidade de vida da galáxia, onde cada um contribui de acordo com sua capacidade e obtem de acordo com sua necessidade,  merecendo o que está de acordo com seus atos. Por que iria eu querer sair daqui rumo a civilizações mais atrasadas?

Uma pequena pausa para explicar melhor esse love story cósmico porque sei que parece um pouco inverossímel. Assim que descobriu sua cara metade, Suzy começou os preparativos para fugir de seu planeta, o que deveria ser feito com o maior cuidado possível, com sigilo absoluto, sem despertar suspeitas na rigorosa vigilância que todos gliesianos se submetem. Um trabalho forçosamente lento, que exige toda a calma do mundo, esperando o momento certo e curto, a pequena janela de fuga que surgisse, para sair em busca de seus sonhos. Desde que captou a suposta projeção de Hadros, passou a tramar incessantemente como resolveria o problema porque já não podia mais viver sem seu amado.

- Apresse, não temos muito tempo a perder. Estou sendo perseguida pela polícia intra-galática.

- Afinal, você diz que sonhei com o seu planeta circumbinário ou com esse planeta remoto que seria nosso hipotético destino? - retrucou Hadros tentando ganhar tempo e bolar alguma forma de fugir daquela doida.

- Não tenho mais tempo a perder, querido. Recebi uma mensagem vindo de você, e era muito forte, algo que me fez vir até aqui para te incitar a ir além de você mesmo, a buscar oportunidades de se conectar com alguém que pode te dar um futuro, está escrito. Porque nesse planeta tu vives uma vida infrutífera. Teu chamado me alcançou lá fora, longe, no meu planeta. Você tem potencial, pode ser tornar um canal para que coisas importantes aconteçam.

- Fala sério, não estou entendendo nada. Quem é você afinal?


Suzy perdeu a paciência, sacou de sua pistola e disparou um raio paralisante sobre Hadros, gerando um campo de forças em torno dele que congelou-o aparentemente, mas cujo efeito de fato era fazer o tempo fluir mil vezes mais lentamente que o normal.  Ela não podia ter se enganado. As ondas morfológicas que recebeu em sonhos naquela noite que o erro do sistema padrão se revelou eram muito claras. Hadros era, sem dúvida, sua alma gêmea há tanto tempo buscada. Não, ela não se enganara, o equívoco não era seu. Foram os senhores supremos do universo que forjaram um erro em seu destino, naquilo que já estava predeterminado desde sempre, por mais que muitos no seu planeta insistissem que ela não batia muito bem da bola, que seu plano era mirabolante, uma aberração, um plano aventureiro.   É bem verdade que é difícil sustentar essa teoria de que dois seres feitos um para o outro tivessem nascido em planetas diferentes.

Já a bordo de sua nave, a caminho do novo mundo, através do onipresente éter luminífero diatérmano que preenche o espaço sideral, Hadros foi para a cozinha e preparou um arroz com petit-pois. A nave de Suzy era diferente de  tudo que Hadros já tinha utilizado em viagens espaciais. Havia uma espécie de jardim de inverno com plantas caindo do teto que davam a sensação de estar no meio de uma mata. Hadros deitou-se em uma rede que se estendia entre dois batentes em uma extremidade do jardim e começou a se balançar lentamente, pensando no que estava acontecendo, como fazia sempre após o jantar. Ouviu a voz de Suzy chegando e ao mesmo tempo um perfume muito agradável invadiu o recinto. Já que estava nessa e não tinha jeito mesmo, pensou que podia se divertir um pouco porque ninguém é de ferro. Suzy não era seu tipo, mas agora não tinha escolha. Tinha a pele cor de chocolate, ela prefere dizer de canela, como autêntica nativa de um sistema planetário circumbinário. Ela se aproximou e foi se encostando de maneira sensual. Procurou um espaço na rede e deitou-se com ele. Ficaram deitados, conhecendo-se mutuamente, quando o desejo veio como ondas de dois pontos distintos que se somam. Seu perfume era arrebatador. Respirava fundo, cada vez mais fundo, inebriando-se com o doce cheiro que emanava do corpo de Suzy. A mão dele deslizou por baixo de seu vestido e sua calcinha estava enxarcada. O amor explodiu com toda intensidade que os corpos permitem. Ela fez um movimento inesperado e brusco, atirando-o ao chão. Ficaram alí, beijando-se, mordendo-se e se apertando fortemente, o corpo de um contra o outro, com desejo intenso e ardente. Em certo momento, ela se virou por cima de Hadros, apoiou suas mãos no seu ombro e o prendeu, ofegante. A gadanha de Hadros latejava sob o sésamo descascado e pulsante de Suzy, que pingava um líquido denso e aromático. Hadros começou a sentir um líquido quente se despejando sobre seu pênis. Ela mijava sobre ele.

“Estou feliz e gozando de plena saúde. Você é meu.”



Nada a estranhar considerando que nossas personagens não são seres humanos, nem seres de sua igualha. Depois desse incidente sem maiores desdobramentos, pois para Hadros nada significou, os dois pombinhos prosseguiram em sua jornada rumo ao planeta selvagem. Passaram por uma nave de condenados. Ela vagaria para sempre, autocompelida, ao extremo de sua órbita, além das estrelas fixas e sóis variados e planetas zumbis, seres espaciais perdidos e a terras sem donos, para a fronteira extrema do espaço, passando de terra em terra, entre povos, entre eventos. Atendia imperceptivelmente a forças desconhecidas que a atraíam sabe-se lá até onde. Movia-se segundo leis de uma equação insatisfatória, entre um êxodo e retorno no tempo através do espaço reversível e de um êxodo e retorno no espaço através do tempo irreversível.

Entre os planetas por onde eles passaram existia um de nome  estranho, intraduzível, לירושלים של מעלה, onde os habitantes eram experimentos de um senhor muito poderoso. Ele criou seus habitantes simples e ignorantes, para que, por si mesmos, fossem aprendendo, evoluindo, se aperfeiçoando, vivendo, morrendo, tornando a nascer, até que um dia pudessem atingir a perfeição relativa, ao invés de criá-los perfeito de primeira; perfeição total só existia no senhor criador. Havia uma promessa feita aos habitantes do planeta de que viveriam num estado de permanente felicidade no mundo espiritual se cumprissem todas as etapas evolutivas, o que era alcançável se se mantivessem sempre ativos para fazer o bem, ajudando os que ainda estavam engatinhando no caminho da evolução. O Criador os criou ignorantes, perfectíveis e com livre-arbítrio, para que só eles fôssem responsáveis pelas suas vidas e pelos seus atos. Pela lei de ação e reação, que existia nesse planeta, ou lei do retorno, como também era conhecida, sofreriam hoje para quitar ações faltosas do passado, de presumíveis vidas passadas. Só assim quitariam suas dívidas e evoluiriam ao longo das vidas futuras até que não precisassem mais reencarnar pois já teriam atingido aquela perfeição relativa. Dessa forma, não precisariam mais viver mais nesse astro de provas e expiações, indo para não sei onde, não procurei saber todos os detalhes. Dizem que nesse novo astro tem um clube de leitura que acede a bibliotecas com todos os livros que quiserem ler, com promessas de gozarem uma eternidade para ler tudo que quiserem, dentre outras coisas a fazer e desfrutar. Pas mal!

Antes de entrar nos domínios do sistema solar, a nave soaktha cruzou por um planeta zumbi conhecido em toda galáxia, porque ele era um campo de trabalho forçado. Havia uma família real no planeta, soldados, mas 90% da população era de escravos gerados em laboratórios de outros planetas que utilizavam de seus serviços. Tais escravos mediam quase que invariavelmente cerca de 60 cm, com peso de cerca de 25 Kg. Os soldados, também fabricados em laboratórios, mediam cerca de 2 m de altura e peso de cerca de 100 Kg. Este era um planeta muito hostil, cuja carga eletromagnética afetava naves passantes a milhares de quilômetros de sua superfície. Procuraram se afastar de sua rota o mais que puderam, desviando para esquerda em relação à via-láctea que cortava o céu à frente deles, dividindo-o em dois. Fizeram uma nova manobra em direção à Ursa Maior e seguiram em frente, sendo possível avistar pela tela principal da nave uma pequenina estrela amarela perdida na escuridão, o objetivo final.

“Bem, já que não tem como voltar atrás, cá estou rumo a esse lugar indesejado, repleto de seres inferiores e hostis”, pensava consigo Hadros. “Devo encarar isso como uma aventura passageira se possível. Assim que lá chegar, avisarei às autoridades que não pretendo permanecer. Aproveito para ver com meus próprios olhos o que jamais imaginei sequer em sonhos. Estive em Alpha Centauro, Sirius e Aldebarã. Fui perseguido por piratas espaciais. Vi muitos planetas zumbis. Estive em Capella e Arturus, atravessei nuvens de poeira interestelar sob o comando do capitão Sheran, o homem mais danado de bom cujas naves que comanda zelam pela segurança de muitos planetas. Nada se compara, no entanto, ao único acontecimento onde tive contato com alguém oriundo do planeta Terra. Foi em Antares que ouvi tais histórias, de uma festa beneficente promovido por um clube de almas penadas, onde ofereciam um jantar de fantasmas seguido de um baile de espectros. Era uma festa temática. Pois bem me lembro que foi nesse local que encontrei o único terráqueo que conheci até hoje. Era um jovem alto e loiro. Usava uma roupa de astronauta com uma insígnia no peito, símbolo da Frota Intergaláctica. Um sujeito muito estranho que falava sobre acessos extrafísicos a outras dimensões.  Tinha um manuscrito nas mãos de cerca de umas cem páginas e dizia coisas ininteligíveis, de que era possível acessar dimensões paralelas ao mundo físico e tais dimensões ocupavam, elas mesmas,  um local físico algures no universo, que o contato com esses seres era possível se atravessamos estranhos túneis parecidos a buracos de minhocas. Humpf! Serei indulgente com esses seres. Talvez até pratique alguma boa ação com esses pobres infelizes. Já ouvi dizer que sua Ciência sofre de uma profunda descoerência lógica, fruto de abordarem a natureza de forma equivocada. Ora, isso talvez não seja de todo mau.”

Enquanto isso, Suzy ressonava na rede. O que ela não sabia é que errou de endereço ao chegar em NGS 549672. Logo ao lado de onde raptou Hadros, alguém a esperava havia quatorze anos, de nome parecido, Andros.

Viajar de um planeta para outro obriga que um dos 2 viajantes viaje pelo espaço sideral a velocidades próxima à da luz, o que faz com que o tempo passe mais rápido para um do que para outro. No dia do presumido resgate, Susy era 14 anos mais jovem do que Andros porque foi ela a se submeter ao fenômeno da dilatação temporal, conhecido pelos terráqueos como o paradoxo dos gêmeos da relatividade restrita, pois foi ela que empreendeu a viagem numa velocidade próxima da luz para pegá-lo em NGS 549672. Pelo menos isso era o esperado. Sua viagem durou 14 anos terrestres para Andros enquanto que para ela tinha decorrido apenas 48 dias. Nesse intervalo de tempo, enquanto envelhecia, Andros dedicou-se a leituras e aos preparativos para receber sua noiva cósmica, deixando tudo pronto para fugir imediatamente antes que os demais conterrâneos dessem conta do que aconteceria. Eram inicialmente da mesma idade, ele e Susy, ele conhecedor profundo dos costumes vigentes na Terra, sabia a importância de ser ela a se sacrificar com a viagem inicial vindo ao seu encontro, embora não fizesse muita diferença quem fizesse o primeiro trecho da viagem do ponto de vista do percurso total da viagem. A história que usou para convencer Susy de ser ela a iniciar a viagem lhe pareceu bastante satisfatória, de que por razões relacionadas ao espectro de radiação de estrelas do tipo solar, seres do sexo feminino se desenvolvem mais rapidamente do que os masculinos nesse planeta pitoresco para onde eles iriam construir o futuro, e que um atraso no passar do tempo para Suzy a favoreceria do ponto de vista da futura vida sexual na Terra.

A super Terra, planeta de origem de Susy, é conhecida intergalaticamente por terem os habitantes mais bem informados sobre assuntos pragmáticos de todo aglomerado de Virgem com sua mais de mil galáxias, entre as quais se insere a própria Via-Láctea. O único defeito de seus habitantes é o de serem reconhecidamente um pouco afobados.

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