sábado, 25 de maio de 2013

Cap I - No Clube da Lua




Era uma vez ... um pequeno planeta de um sistema estelar periférico de uma galáxia ordinária que se tornou palco de uma sangrenta batalha entre senhores de impérios que se digladiam por todo o cosmo. Seu nome: Marte, mas não é diretamente a ele que esta história se refere, e sim ao planeta ao lado, que por um equívoco dos seus habitantes primitivos foi chamado de Terra. A vida na superfície de Marte ficou completamente comprometida em consequência de batalhas que ali ocorreram, a guerra se alastrando até o planeta vizinho a um nível de sofisticação tão grande que deixa muitas vezes indecisos seus combatentes quanto ao lado pelo qual lutam. Não há ideologias de espécie alguma, o que importa é apenas o poder. Tanto faz de que lado se está, são todos indiferentes. O habitat terrestre permissivo e promíscuo construiu civilizações que permitem a convivência até certo ponto pacífica entre inimigos mortais, transferindo as manobras de guerra para os bastidores políticos, sem o conhecimento do grande público que apenas pressente a ameaça pela desconfiança que lhe inspiram seus líderes. A guerra tornou-se dissimulada e camuflada, um vale tudo maquiado com projetos de sustentabilidade de fachada em que valorizam e marqueteiam projetos em conformidade com o meio ambiente, como se importassem em não destruir a natureza como ocorreu com Marte, onde  a vida segue seu curso normal atualmente apenas nos canais subterrâneos artificiais. A hecatombe marciana se tornou uma lição aprendida para as autoridades terráqueas, de que a natureza é uma totalidade orgânica e harmônica e que se deve procurar preservá-la sempre que possível. Poucos são os que têm acesso aos verdadeiros desígnios que norteiam o rumo dos acontecimentos e você, leitor, está ingressando em um terreno perigoso ao tomar conhecimento dessa história.

Os senhores que controlam o planeta Terra, atualmente, tem ideologia de mínima interferência na evolução natural e tecnológica de seus habitantes e contam com colaboradores de diversos matizes políticos que se enfrentam entre si, com aparente liberdade, visando cada um implantar seu próprio sistema partidário. São incentivados a acreditar que o mundo foi criado para eles, ou que sempre existiu e ninguém tem participação nisso, aproveitando o fato de que muitos nem querem saber de nada. São muitas as moradas e em muitas delas, habitadas por seres mais inteligentes que os terráqueos, as questões básicas das civilizações alienígenas já foram resolvidas. Em tantas outras, o estado de selvageria não foi superado, e os seres se envolveram em questões intermináveis que os tornaram mais hostis que as mais hostis criaturas observadas no planeta periférico de onde relato esta história.  

O planeta Terra, conhecido cosmicamente como Gaia, apresenta uma complexa variedade de seres vivos, que ao longo de milhões de anos lutam por sua sobrevivência, cada qual pela preservação da sua espécie. À exceção de uma pequena parcela desses seres,  denominados humanos, a maioria deles é pouco evoluida. Quanto a isso é preciso esclarecer que os humanos se confundem com outros seres que lhe são muito parecidos e com os quais convivem nas diversas civilizações terrestres, conjugando atos e pensamentos que se interpenetram no cotidiano, mas que servem a propósitos diferenciados. Chamemo-los, por enquanto, de humanoides. A distinção entre humanos e humanoides é complexa, depende da capacidade de se perceber o núcleo de vida invisível a que se encontra ligada a mente e o coração de cada um. Enquanto os humanos servem com profunda convicção a seus semelhantes,  com espírito de boa-vontade, sacrifício e renúncia pessoal, os humanoides obedecem inconscientemente a impulsos mecânicos, de forma irresponsável, visando prioritariamente sua satisfação pessoal imediata e a dos que podem ajudá-los em sua jornada egocêntrica no longo prazo. Abordaremos essa questão com mais detalhes oportunamente, detendo-nos, por enquanto, na caracterização genérica dos habitantes do planeta.

Por constituír a esmagadora maioria dos terráqueos, e pelo fato de que cada planeta se caracteriza cosmicamente segundo a natureza e extensão da onda de sentimento de seus íncolas, a Terra não está bem na fita perante outros sistemas planetários. Os terráqueos sentem uma estranha satisfação na desigualdade, mesmo quando alardeiam o contrário, sendo que dez por cento da população possuía, há apenas algumas décadas, noventa por cento dos recursos econômicos existentes. O atraso dos terráqueos se justifica por uma característica marcante de sua natureza, a de pensarem uma coisa, dizerem uma segunda e fazerem uma terceira, fruto dos conflitos mentais causados pela cosmodiversidade de suas origens. São muito pouco eficazes no que fazem, com contradições que atraem missionários religiosos e ativistas políticos de diversos planetas. Os alienígenas consideram o local apropriado para o desenvolvimento de uma compreensão tolerante do conhecido enigma cósmico da desigualdade e da sorte. Embora haja bastante diversidade de seres entre um planeta e outro, cada planeta, à exceção da Terra, é intolerante em relação à imigração de seres de outros planetas. Porém, na Terra, alienígenas aventureiros e bem orientados conseguem ser bem sucedidos e galgam postos executivos de significativa importância, podendo-se contabilizar entre suas realizações, por exemplo, a redução da desigualdade social nas últimas décadas, de maneira que cerca de 60% da população mundial pode ser considerada de classe média, embora a renda per capita média que caracteriza essa classe seja hoje a quinta parte do que era no início do século XXI. Esse feito tem impedido que alienígenas disfarçados de bons governantes possam ser desmascarados, permitindo que prossigam em seus projetos de dominação do planeta, a meta final sendo a conquista completa da Terra para um dos impérios que disputam seu controle total.

A diversidade existente, como foi dito, tem uma explicação. Gaia é refúgio de seres oriundos de diversas partes da galáxia, de regiões extragaláticas e de casos identificados como pertencentes a universos paralelos. Os alienígenas vieram dos quatro cantos do universo, embora a maioria deles desconheça os motivos que os trouxeram para cá. Outros sequer sabem que não são daqui. Com tanta variedade, não é de se estranhar a diferença entre as pessoas. Diferenças que se fazem notar na constituição física mesmo, porque quando se considera as condições existentes em estrelas distantes, percebe-se que as estruturas moleculares dos seres que habitam essas regiões são, muitas vezes, diferentes das existentes aqui na Terra. No processo de adaptação às condições terrestres dos imigrantes, há uma completa reprogramação de sua estrutura biológica e visual nas chamadas clearing house do espaço-porto que os recebem, de forma que eles devam aparentar pertencer a uma das etnias nativas. A atmosfera do planeta é úmida e oxigenada, podendo ser corrosiva e letal para muitos alienígenas.

       O simples fato de estar abordando essas questões é suficiente para que interferências alienígenas tentem influenciar as descrições  que  faço e, se não tomar cuidado, as contradições de meu próprio código de memória programável, apagável, somente de leitura, não me permitirão continuar contando esta história, portanto, desculpem-me os leitores, ordens superiores me limitam a declarar que os espectros de estrelas distantes mostram que estas apresentam diferentes concentrações de elementos químicos daquelas encontradas no Sol dos terráqueos. Obrigam-me a dizer ainda que o campo de radiação gerado por estas estrelas não necessariamente é o mesmo que o recebido pela Terra. Prosseguindo ainda com as orientações que resulta da falha na solução de dependências internas do meu próprio sistema matriz, finalizo esse interregno lógico afirmando que por maiores ou menores que sejam as semelhanças entre as condições na Terra, à época de surgimento da vida, e as de dado planeta em momento análogo, a evolução das espécies não deve ocorrer de forma idêntica. Stop. Exit.

Desculpem-me os leitores e aproveito o incidente que acaba de ocorrer ao abordar a questão das diversas procedências dos terráqueos para informá-los que os registros existentes em nossa memória foram gerados em outros planetas e isso explica as interferências que impediram, no meu caso particular, uma clara explanação desse assunto.  Não temos autonomia suficiente para dizer o que sabemos porque somos monitorados, controlados e interferidos permanentemente a partir dos planetas de onde viemos. Em suma, o que tentei explicar é que corpo e alma dos seres são diferentes, quando oriundos de outros sistemas planetários comparados com os nativos da Terra, e, por conseguinte, as referências que cada um usa na sua vida diária não podem ser as mesmas, e nem serem convertidas satisfatoriamente de uma percepção da realidade à outra. A comunicação entre os seres torna-se, assim, muito difícil, com reduzida capacidade de entendimento entre eles.  Em relação ao temperamento dos seres, se já existem questões sobre a possibilidade de que ele seja afetado pelo clima terrestre característico da região onde nasceu e vive, imaginem o quanto o fato de serem nativos de planetas diferentes deve afetar os diferentes tipos existentes. Não há hipótese de reconhecimento entre dois mundos distintos, cada pessoa traz um mundo particular dentro de si, fala língua diferente, mesmo quando não dito de maneira literal, e uma raramente se comunica com a outra.  O instrumental de comunicação formal no planeta, as palavras, está longe do ideal de objetividade necessária para uma clara e inambígua compreensão entre as pessoas, o que faz com que uma simples palavra tenha tantos significados quantos sejam seus interlocutores. São patéticos os esforços de criação de uma linguagem objetiva que permita uma clara comunicação entre os seres. A Terra é uma Babel.

A poucos anos-luzes daqui, algumas civilizações já chegaram a estágios bem mais elevados. Assim é que em algumas dessas admiráveis civilizações os seres são gerados aos pares de forma programada em laboratórios, macho e fêmea são feitos para terem suas vidas potencializadas ao se complementarem ao longo de suas existências. Em outras, embora formas mais primitivas de procriação persistam, é possível encontrar o par ideal de cada indivíduo graças às técnicas de mapeamento do genoma das espécies. Porque também na natureza os seres são gerados aos pares, embora seja uma tarefa inglória, quase sempre condenada ao fracasso, ao se tentar encontrar em que cafundó dos judas teria se metido nossa cara metade. Nas civilizações onde isso é factível, a eficácia produtiva da sociedade foi aumentada em dezenas de vezes por razões que são muito fáceis de se imaginar quando se vive de forma orientada e planejada. A humanidade sempre ansiou por uma organização assim, que pudesse aproveitar o máximo do potencial humano, recorrendo a recursos os mais variados ao longo da história, seja invocando deuses, adorando faraós, criando mitos, poderosas instituições ou outras organizações ou regimes  políticos de triste memória.  

Em certa civilização de um planeta não muito longe daqui foi desenvolvida uma técnica cujo emprego se tornou proibido em muitos lugares, porque interfere nos padrões locais de organização das uniões entre os seres. A técnica que permite encontrar um companheiro ou companheira ideal, independentemente dos processos reprodutores, consiste no estabelecimento de conexões entre as codificações genéticas que caracterizam os seres, uma espécie de mapeamento genético, de tabela sinástrica, e essa conexão se faz independente da distância, sintonizando perfeitamente emissor e receptor, onde quer que estejam os consortes, e que permite descobrir com exatidão quem é nossa cara metade, presumivelmente. A técnica tem ferrenhos adversários, sobretudo nos planetas mais moralistas ou ortodoxamente cientificistas, porque as soluções encontradas muitas vezes ferem os padrões morais dessas sociedades, ainda que dividam a comunidade científica, unindo os seres independentemente do gênero, o que muitos julgam ser uma anomalia à primeira vista.

Esses, entre outros, assuntos escatológicos foram abordados na reunião na casa de Deise, em que algumas pessoas foram convidadas para conversar sobre as mais recentes notícias de uma tragédia iminente para todos os terráqueos: a rota de colisão de um asteróide com o planeta, anunciada para dentro de um mês. Aos meados da década de 30 do século XXI, a morte por doenças já não era mais um problema no planeta, já tinha sido vencida pela engenharia genética. A causa mortis dos terráqueos decorria exclusivamente de desastres naturais, homicídios e de guerras pontuais. O asteroide tinha trazido ao centro das discussões valores ancestrais que andavam marginalizados desde a ultima destruição em massa ocorrida no planeta, havia setenta e um mil anos, no lago de Toba, na Indonésia: a solidariedade e a cooperação entre os habitantes. A sobrevivência da espécie humana dependia uma vez mais da cooperação ao invés do conflito, que tinha sido o traço principal da vida na Terra nos últimos milênios.

Etevaldo, um cara profundo de olhos rasos, moreno cor de jambo, do tipo avermelhado, longos cabelos ruivos presos em um rabo de cavalo, magro e atlético, de 1,95 m de altura, atraía a atenção dos demais presentes na sala quando interrompeu subitamente sua fala com algo que o incomodava. Percebeu que os presentes trocavam olhares enquanto falava, como se compartilhassem um segredo comum. No silêncio que se seguiu, ouviu um dos presentes exclamar:

“Bravo, Etê! A mensagem que acaba de nos passar é muito significativa. De nada nos valeu vencer a morte com nossa avançada tecnologia se agora seremos todos destruídos pelo cometa”, disse Luana, com seu ar costumeiro de elegância e generosidade.

“Assim como todas as células do nosso corpo conversam entre si, eu tenho a esperança que meu subconsciente restabeleça a comunicação com meu planeta natal para que me salve desta catástrofe. Espero que ele mande um email para nossa embaixada que orbita o planeta e que um plano de retirada esteja sendo finalizado” , suspirou Celeste.

“Fala sério!”

“É sério.”

“Você também acredita que o planeta Hercolubus passará perto da Terra em breve?”

“Do que é que você está falando? Não estou sabendo de nada. Que planeta é esse?”

“Dizem que ele já passou e nada aconteceu.” Dessa vez foi o Dr. Marciano que interveio: “É um planeta que volta às vizinhanças terrestre a cada 13000 anos e causa destruição generalizada no planeta. É cerca de 1600 vezes maior que a Terra e, embora não colida com o planeta, passa tão perto que causa um choque magnético, acarretando tsunamis e tufões. Ele passou entre as órbitas de Júpiter e Marte.”

“Quem sabe, então, não ocorrerá o mesmo com este asteroide?.”

“Não sei o que estou fazendo aqui. Odeio essas conversas escatológicas.”

“Geralmente as pessoas fazem esse tipo de previsões quando estão prestes a morrer ou sua vida está tomada de um completo vazio.”

E continuaram falando dos dias finais, sobre choques, radiações, inversões do polo magnético, aumento espetacular do tamanho do planeta Marte no céu, rivalizando em tamanho com a Lua, prolongamento do dia com a imobilização do sol, e outros prenúncios fatais estimulados pela calamidade que todos esperavam e temiam, desde a origem dos séculos, nas suas diversas modalidades, mas que agora pairava visível no céu do frágil planeta azul. Ou seria essa conglomeração apenas mais um episódio da ancestral obsessão que os terráqueos têm pela ideia de um aniquilamento da espécie?

Sentado em uma cadeira delgada, de metal, com o protetor de borracha de um dos pés faltando, bem em frente do sofá de três lugares e tendo o outro sofá a sua esquerda, Etevaldo observava o burburinho generalizado causado pelas conversas paralelas. Um relógio na parede marcava 16:50 h e tinha um pássaro desenhado na sua vidrilha que parecia ser o autor da cantoria que o relógio emitia a cada hora cheia. Um pouco mais ao fundo da sala, à sua direita, havia uma mesa de seis lugares posta com o lanche que Deise tinha preparado para os convidados, colocada do lado oposto da porta de entrada. Por trás da mesa um móvel estante com diversas coleções literárias. Etevaldo reconheceu que algumas delas eram de coleções que saem de vez em quando nas bancas de jornais, a maioria de capa dura. Na prateleira superior esquerda havia uma coleção bem antiga, de marroquim grená gravado a ouro. A cadeira em que Etevaldo se sentava estava afastada da parede por conta de um aparador que se interpunha. Duas outras cadeiras com assento bastante duro ficavam de cada lado seu e, ao centro, uma mesinha resplandecia com belas flores amarelas. Todos ali se conheciam das reuniões mensais do clube de leitura que participavam em Icaraí, à exceção de Cássio Péia. Os convidados de Deise se espalhavam na pequena sala, sentados em dois sofás, de dois e três lugares, o menor deles com uma descoloração difusa a partir do centro para as laterais.

Disse Etevaldo: para ilustrar o que você falou, Celeste, vou contar a história que se passou com a amiga de um amigo, a quem lhe era muito querida, e foi com grande pesar que ele me narrou os acontecimentos. Ao me contar a história, ele se abalou profundamente. Não sei se posso me referir tão somente a ser, o ocorrido, uma história, se não seria melhor me referir a ela no plural, por ter sido justamente a pluralidade de histórias como sendo a causa do problema. Porque somos a totalidade das histórias que imaginamos, não apenas as que realizamos, mas todas que são possíveis. O mundo não é tão objetivo assim como querem nos fazer acreditar os realistas.

“O que é que você está falando, Etevaldo? Você sabe que não pode revelar essas coisas publicamente desse jeito”, retorquiu Deise percebendo que Etevaldo estava invadindo um terreno perigoso com sua fala.

Um som de piano entrou pela janela lateral, que dava para uma longa entrada que margeava todo o edifício, possivelmente de algum apartamento mais ao fundo. Etevaldo reconheceu a canção de Bella Bartok. Olhou para o lado de fora, por trás e acima do edifício vizinho um bloco de nuvens negras assomava. Pensou em ir embora antes que o céu desabasse. Custou um pouco a responder e quando o fêz, a voz saiu estranha e quase não se reconheceu:

“Creio que esse assunto não é novidade para ninguém desse grupo, Deise.”

“Você é um dos nossos, Etevaldo? Ou não sabe do que está falando?”, não se conteve Deise manifestando uma certa impaciência com o rumo que a conversa tomava.

“Seja lá o que você queira dizer com isso, Deise, não faço parte de nenhuma organização secreta que devo dar satisfação do que falo ou deixo de falar. Meu compromisso é com minha consciência e com a verdade dos fatos.”

“Temos que reconhecer que se trata de uma reação inesperada”, ponderou Maria do Céu, “estou gostando da polêmica.”

“Prezado amigo, é absolutamente imperioso que interrompa o que está dizendo. Quero ter uma conversa reservada com você e ordeno, por ora, que adie o assunto que está abordando”, apressou-se a intervir Deise, antes que a discussão evoluísse com desdobramentos imprevisíveis. “Posso ter cometido uma imprudência ao convidá-lo para essa reunião e, de fato, antes de anunciarmos o propósito desta agremiação, precisamos ter cautela, e conhecer melhor os senhores presentes”, fez um gesto largo envolvendo toda a plateia, o dorso da mão conduzindo o movimento. “Não é por acaso que vocês estão aqui esta tarde, mas também não será por isso que verdades incômodas devam ser reveladas tão precipitadamente.”

Etevaldo ainda esboçou uma argumentação mas Deise lhe fez um sinal quase imperceptível para acompanhá-la, se não fosse a observação atenta de Saturnino. Deise era uma mulher centenária que sabia se fazer respeitar e todos a temiam por detrás da admiração geral declarada.

Entraram por um corredor ladeado por uma estante do rés-do-chão ao teto, repleta de livros com disposição irregular em relação à suas alturas. Dobrando à direita dava na cozinha da casa e logo em seguida para uma área interna com plantas penduradas da parede da casa e do muro que delimitava sua residência. Sobre a pia da cozinha estavam alguns legumes que a ajudante de Deise tinha trazido da feira, feita pela manhã: beringelas, pimentões verdes e vermelhos, abobrinhas, ervilhas e algumas cabeças de alho.

“Dona Hermione”, chamou a ajudante.

Deise voltou-se bruscamente para ela e a repreendeu em voz baixa por chamar-lhe dessa forma, pronunciando palavras desconhecidas. Etevaldo estranhou o fato mas desviou logo sua atenção enquanto descia uma escada de três lances, assustando-se por um momento ao ver um coelho passar rapidamente a sua frente. Respirou forte olhando ao redor, um cheiro bom de flores preenchia o ambiente. Mais ao fundo havia uma gaiola com um pássaro que cantava intensamente, sendo observado de cima do muro por um gato branco e preto.  A um canto, uma hera subia pelo buzinote e tentava fugir pelo telhado. Deise passou o braço por entre o braço e o corpo de Etevaldo e lhe disse que tinha algo para lhe mostrar. Pediu-lhe para esperar um pouco e retornou à entrada que tinham acabado de atravessar, fechando a porta da cozinha atrás de si. Era possível ouvir algumas vozes vindo da sala onde estavam os convidados da reunião de temas apocalípticos, acompanhadas de algumas risadas. Com um breve suspiro ele se sentou em uma cadeira de vime e passou a observar o cenário com curiosidade.

Enquanto isso, na sala, as pessoas se perguntavam sobre o que poderia estar acontecendo.

“Tem sempre uma nuvenzinha negra pairando sobre a cabeça desse rapaz.”

“Não fale assim dele, é um belo espécimen!”

Demorou uns dez minutos para Deise aparecer novamente, atravessando o pequeno jardim com uma brochura com mais de 100 páginas, aparentemente.

“Quero que você leia isso antes que revele o que me pareceu que você queria falar lá na sala. Tenho guardado isto comigo por 76 anos. A história que está aí registrada vai te ajudar a elucidar o que aconteceu com sua amiga. Depois de ler, então, se julgar oportuno, você poderá revelar a história que se passou com ela.”

Profundamente intrigado com o conteúdo que haveria naquele manuscrito, Etevaldo seguiu Deise enquanto ela atravessava de volta o jardim, reentrando pela porta da cozinha após subir o lance de escada. Ela cedeu passagem para ele e fechou a porta atrás de si. Reaproximaram da porta da sala da frente e reentraram de braços dados enquanto todos os olhavam com grande curiosidade.

“Qual o segredinho?”, perguntou Adélia, “afinal, tem alguma relação com a ameaça que paira sobre nossas cabeças, caro Sr. das estrelas?”

“Etevaldo é sempre surpreendente em suas ideias”, antecipou Deise antes que Etevaldo pudesse falar alguma coisa. “Pensei que eu era uma grande inventadeira de modas, mas descobri em Etevaldo alguém que veio me suplantar completamente. Confesso que perco para ele em matéria de criatividade”, acrescentou. “Bem, lamento informar que teremos que encerrar nossa reunião de forma inesperada”, arrematou.

Etevaldo sentiu algo estranho ao olhar de novo o cuco na parede. Percebeu que cada relógio da casa mostrava uma hora diferente e, por um momento, perdeu a noção do tempo. A nova perturbação que sentiu o levou à consciência das coisas, compreendeu subitamente o que estava acontecendo. O braço de Deise em torno do seu parecia prendê-lo mais do que ele achava normal. Tinha sido muita ingenuidade achar que estava diante de uma plateia normal de pessoas aquela tarde na casa de Deise. Já haviam lhe advertido sobre a presença cada vez maior de extraterrestres e clones entre a população local, inclusive de ETs estrangeiros, e, embora ele soubesse que a Terra sempre fora visitada por esses seres alienígenas, o que ele ainda não sabia era que a presença deles era mais alarmante do que imaginava, e este era um fato que não poderia mais  ser negligenciado. Estava claro agora que aquele encontro não se tratava apenas de uma reunião informativa e que alguns dos presentes usavam nomes fictícios para não revelarem o verdadeiro motivo de sua participação.

Sentados no sofá menor, Celeste, Saturnino e alguém desconhecido para Etevaldo conversavam em voz baixa, inclinando-se entre si como se não quisessem ser ouvidos por mais ninguém, e suas vozes eram vagas murmurantes que pareciam originar-se de dentro da cabeça do cientista.

“Pelo visto nosso palestrante violou algum código secreto de nossa anfitriã,” cochichou Galatea. “Deise não esperava esse comportamento de Etevaldo. Vocês repararam a tensão entre eles? Parece que alguma ordem pré-estabelecida foi subvertida.”

“Achei interessante e insólita a história que ele contou!”, disse Celeste, “de que planeta será que ele vem?”

“Aposto que ele é do mesmo planeta do Darth Maul?”

“Eu não sei, não consegui identificar muito bem. Já vi outros dele por aí.”

“Esses cientistas não dizem coisa com coisa. Devemos ponderar bastante antes de aceitar as explicações que ele deu.”

“Você fala sério? Gostaria de saber o que ele teria revelado se não tivesse sido interrompido por nossa anfitriã. Esperemos a próxima reunião mensal para sabermos o que ele tem pra falar depois de ler o documento que tem em mãos” contrapôs Saturnino e, num instante, um burburinho ainda maior tomou conta da sala.

“Não vou suportar até lá. Preciso me informar sobre o conteúdo daquele manuscrito e indagar a respeito da razão pela qual Deise lho deu para ler.”

“Controle-se, agora não é hora de curiosidade.”

“Por Deus que não perco a próxima reunião, de maneira alguma.”

“Que sorte que ela se dará antes do choque dos planetas!”

“Isso pouco me importa. No que poderá mudar nosso destino?”

E assim falavam todos entre si quando Etevaldo ajeitou o rabo de cavalo num maneirismo característico e foi-se embora, sem se despedir de ninguém. Na porta, antes de sair, ainda parou para deixar seu jamegão no livro de presenças da reunião extraordinária do clube da lua. Assinou no espaço em branco que tinham deixado reservado para ele.


domingo, 27 de janeiro de 2013

me & mrs. Kue

les concierges du CLIc

Conto 2 - O raio trator


Estávamos todos reunidos na casa de Neide  quando o fim do mundo aconteceu, pelo menos do mundo como conhecíamos até então. O noticiário da TV anunciava grandes catástrofes por toda parte no globo terrestre. Éramos testemunhas indiretas, hoje eu sei, porque pudemos perceber, ao olhar pela janela da sala do apartamento que alguma coisa de muito estranha estava ocorrendo em algum lugar não muito longe de onde estávamos, tamanha era a quantidade de estrelas cadentes que cortavam o céu vindo de todas as direções. Surpreendentemente, nada aconteceu em nossa vizinhança, pelo menos de imediato, pensávamos. Ocorreu-me que talvez devêssemos sair correndo pra rua antes que as consequências do desfirmamento celeste chegassem até nós. Pensei logo em tsunamis, incêndios de grandes proporções, que cedo ou mais tarde nos alcançariam.

Depois desse evento catastrófico dos fins dos dias, foi longo, muito longo o período de aprisionamento que vivi. Tudo aconteceu muito depressa naqueles momentos finais em contraponto com o que viria depois. Lembro-me, no entanto, de poucas coisas, que não se casam para formar uma ideia clara de como vim parar nesse estranho lugar onde vivo desde então. Além de não compreender exatamente tudo que aconteceu naquele dia, por não conseguir montar uma cadeia lógica para os acontecimentos, estimo que danos maiores também se somaram para que eu chegasse ao ponto que cheguei, talvez o efeito de um aprisionamento prolongado, como saber?

Lembro-me de alguns flashes, entre eles o de haver conhecido uma estranha criatura que me abordou como se já me conhecesse, me chamando de Arthur. Olhei para ela, e custei a entender o que estava acontecendo comigo. Senti um aquecimento pelo corpo e cheguei a desejar-lhe. Era estranha e interessante. Foi um pouco antes que eu percebesse a estranha luz que vinha do espaço e incidia sobre nós, aparentemente apenas sobre nós dois, banhando nossos corpos, envolvendo-nos em uma espécie de neblina, de nuvem-chuva. Não me lembro de mais nada depois. Talvez tenha sido um sonho. Será que realmente encontrei aquela mulher? Não tenho certeza se isto de fato ocorreu. Acho que sou habitado por personagens fictícios entre os quais me perco muitas vezes, ou talvez quase sempre, quando me sinto incapaz de saber quem sou nessa multitude de pensamentos, vozes e imagens que me povoam.

Essa aparente perda de identidade experimentada por Etevaldo estava levando-o às raias do desespero, deprimindo-o, entristecendo-o de uma forma que só estava servindo para agravar seu estado de melancolia. A experiência estava além da sua capacidade de assimilação, ele não conseguia a energia gratuita que pairava em torno de si, o que era evidentemente um sinal de inteligência curta. O feixe oco de laser que o abduziu era um raio trator oriundo da nave Startrek que suspendeu os dois pombinhos do chão, conduzindo-os por um duto para uma nave espacial em formato de charuto que pairava a uns 100 metros do local onde estavam.

O mundo mudou depois disso, não sabía até então que estava presenciando uma profunda revolução no planeta em que vivía. Não devemos nunca subestimar as reviravoltas que o destino reserva para nossa vida. Quando alimentamos a ilusão de termos o controle dela, um grande vazio costuma se estender a nossa frente, principalmente se não sabemos esperar o que o acaso pode nos oferecer.  Por isso, caro leitor, você não pode imaginar o prazer que sinto em certificar-me que a natureza se repete indefinidamente naquilo que há de mais trivial em nossa vida.  Mesmo agora, quando esperava que tudo fosse diferente, que pensava que emergiria de súbito em outro mundo, se nada não fosse, uma outra era, numa outra natureza cujas leis fossem diferentes daquelas da nossa, deparo-me com a mesma situação que deixara no outro mundo. Estarei preso a algum padrão do qual não consigo me libertar?

Ah, a diversidade dos mundos possíveis, como ajudava nessa hora! Sabemos e muito apreciamos o fato de que as coisas exteriores do mundo visível provêm de várias dimensões diferentes e complementares ao mesmo tempo. Convivemos numa multiplicidade de mundos exclusivos, não apenas forjados pelas lentes da ilusão, mas por leis naturais mais férreas que a realidade do cotidiano que experimentamos. Etevaldo pensava assim, julgava compreender um pouco mais do que a maioria de seus iguais, e gozava da convicção íntima de que viver como um cara desligado era o segredo de jamais deixar o melhor da vida escapar. Esse era seu maior ato de confiança: transcender-se. Subconscientemente agia como se acreditasse que pessoas aparentemente separadas no tempo e espaço, mas que vibram em uma frequência comum, acabam se reencontrando repetidamente pelas voltas que o mundo dá.  

sábado, 22 de dezembro de 2012

Cap VI - Mais Brilhante que o Sol




A música de Colbie Caillat entrava pela janela, tocada em alto volume na casa da vizinha, um lugar que parecia estar em permanente festa.


Oh, this is how it starts, lighting strikes the heart
It goes off like a gun, brighter than the sun
Oh, we could be the stars, falling from the sky
Shining how we want, brighter than the sun  

Mais brilhante do que o sol, realmente, era uma linda chuva de estrelas como jamais vista anteriormente, como se fosse um espetáculo pirotécnico sem som da virada de ano na praia de Copacabana. O céu parecia estar desabando, como seria se o mundo estivesse acabando, mas a vizinha não viu nada. Eu também teria perdido de vista o fenômeno se não tivesse ido até à varanda fumar um cigarro. Quase perdi o fim do mundo, daquele mundo que não era o meu, pelo menos, porque este estava apenas começando.

Muitas coisas aconteceram depois que me separei de Suzy. Entre elas, decidi mudar de nome para me adaptar às novas condições de vida, adotando um nome comum entre os cidadãos do local onde decidi viver: Hélio. Vim morar em uma cidade provinciana próximo a uma grande cidade da América do Sul, onde se esconde grande parte dos salafrários do universo, que fogem de alguém ou de algum lugar. De forma a evitar a proximidade física com Suzy e novos aborrecimentos, utilizei um recurso engenhoso que trouxe de meu planeta natal, que era o de voltar no tempo de forma a garantir a separação conveniente em relação ao problema Suzy. Era início da década de sessenta do século XX do calendário terrestre predominante no lado ocidental do planeta.

O propósito de Hadros, agora Hélio, era construir um novo futuro, diferente daquele que pensava  e arquitetava no seu planeta de origem. Afinal, agora se encontrava em condições completamente distintas do que vivera até então. E diga-se de passagem, era necessário construir um passado também. Hélio não tinha um passado no planeta Terra e, portanto, era necessário inventá-lo. Vivendo assim de uma forma em que o passado não está propriamente definido, Hélio decidiu criá-lo à medida que fosse vivendo, numa espécie de experimento de escolha retardada, adiando suas decisões diárias até o último momento de suas ações, após avaliar cuidadosamente as consequencias, ou seria melhor dizer, as causas que as originaram. Essa quase não decisão já se mostrou muito eficaz anteriormente, técnica esta que ele dominava com maestria, prevenindo-o de muitos problemas inconvenientes. Tal técnica de autogestão pessoal proporciona a seu portador a possibilidade não apenas construir seu passado como também de alterá-lo a qualquer momento.

Hélio chegou em Niterói havia pouco tempo e ainda não conhecia muita coisa, embora tenha se familiarizado rapidamente com o ambiente da cidade e costumava frequentar a praia de Icaraí, onde passeava pelas areias despreocupadamente. Foi em uma dessas caminhadas que encontrou Saturnino, de quem tornou-se amigo e se frequentaram a partir de então. Foi amizade à primeira vista. Saturnino prometeu ajudá-lo a construir o passado desejado, conhecia as pessoas certas para isso, lembrou-se logo de Arturo, outro amigo esquisitão que tinha conhecido também na praia de Icaraí. Pois era isso que Hélio queria, construir seu passado em função do futuro almejado. Passado e futuro, um espectro duplo de possibilidades idealmente correlacionados. Ele e Saturnino viravam noites sentados nos bancos da praia de Icaraí lucubrando sobre as possibilidades da história de vida a ser criada.

A Helio lhe encantavam as mulheres locais. Começou a azarar todas que encontrava pela frente. “O bom é assim”, dizia, “a corte sem necessidade, para que seja natural e simples quando for de fato necessário e desejável.” Envolveu-se tanto com todas que as oportunidades ensejavam que acabou se entusiasmando com uma delas, que só lhe deu o que queria depois de ser levada ao altar. Aos amigos que lhe advertiam sobre a inconveniência de tal matrimônio costumava repetir que nunca dispensava uma mulher bonita, “seja ela de que espécie for”, repetia sempre, como se significasse algo mais do que compreendemos em um primeiro momento.

Seu casamento durou o tempo que uma cigarra canta.

“Não tenho esperança de encontrar uma mulher para amar, uma apenas, porque o que eu amo nas mulheres está dividido entre muitas. A mulher que me satisfaria se fragmentou em incontáveis pedaços e eu agora busco restaurar os cacos espalhados em diversas delas”, ouvimos-lhe dizer.  

“Hélio, sua vida é insustentável. Como pode viver dessa maneira? Você acabará fazendo alguém sofrer dramaticamente”, ousou dizer Arturo, o amigo esquisitão, sacudindo a cabeça ao ouvir tal disparate do amigo, como se apenas confirmasse o que ele já sabia desde o início. Ele era da opinião de que os casamentos são selados no céu e que, uma vez que duas pessoas estivessem predestinadas para se pertencerem, nada poderia separá-las na Terra.

“Tudo que fizermos nesta dimensão dos acontecimentos efêmeros não pode afetar o mundo das coisas que permanecem, daí a necessidade de se colocar à prova as candidatas que encontramos nessa vida, para saber quem de fato deve nos acompanhar até o fim de nossos dias”, arriscou Saturnino, em dúvida sobre o que realmente significava o que acabara de dizer, mas com um forte pressentimento que correspondia ao pensamento do amigo alienígena.

“A ética é como o amor”, Arturo, “deve-se viver o presente, as consequências não importam. Quando se pensa no passado, é porque já se perdeu a paixão. O que você disse pode ser verdade, enquanto opção de vida, espero contudo que a própria vida resolva o problema para mim, sem que eu precise fazer nada”.

Uma ética centrada na transcendência. A traição amorosa não é aceita socialmente, é uma culpa absoluta e imperdoável; certamente não pode, mas deve ser realizada. Hélio era uma espécie de herói trágico, um autêntico revolucionário que afronta o mal e aceita suas consequências. Só a traição realizada por quem sabe firmemente e fora de qualquer dúvida que ela não pode ser aceita sob nenhuma circunstância seria de natureza moral.

Assim, o casamento de Hélio se desfez em um desses ditos testes planejados para caracterização de quem é o ser que deve realmente viver a nosso lado. Constatou-se que a esposa se tratava de uma falsa terráquea, um ser clone que tinha substituído a mulher verdadeira quando ela ainda era uma adolescente. A verdadeira Marilza, era esse o nome da mulher de Hélio, estaria agora em algum subterrâneo do nosso planeta, onde grassam bases militares, como se diz, servindo-se de cobaia de experimentos extraterrestres.  

Depois de Marilza, Hélio conheceu uma bela jovem niteroiense de nome Rosa, com quem viveu um tórrido romance de conseqüências duradouras. A certa altura do relacionamento, devido a diversos obstáculos que surgiram na vida dos enamorados, o casal decidiu fugir mundo afora, e Rosa avisou aos pais que iria de férias para São Paulo. O verdadeiro motivo, um segredo, era viver em plenitude a força de seu amor, por mais bizarro que possa ter sido a escolha de São Paulo para tal cenário.

Rosa viajou para a capital paulista na noite de 12 de Agosto de 1964, em um trem noturno, que lá chegou às 8h15min do dia seguinte. Infelizmente, o amor de Rosa não resistiu aos testes que Hélio a sujeitou e o romance terminou indesejadamente ao cabo de um mês, com Rosa voltando decepcionada para Niterói, curiosamente tornando verdadeira a mentira que alegara a seus pais ao partir para São Paulo. No ônibus em que regressava para Niterói na noite de 13 de Setembro de 1964, que saiu da capital paulista às 21:00 horas, Rosa relatou sua malfadada história a uma jovem alma elegante sentada na poltrona a seu lado que também voltava de São Paulo para Niterói e que logo lhe despertou a mais sincera simpatia, jovem esta que viria a narrar suas peripécias algumas décadas depois em uma obra literária a que deu o título de “Cabine Individual”. A semelhança entre os nomes das duas jovens nos fazem pensar em como são significativas as coincidências que a vida nos proporciona. Anos mais tarde Hélio encontraria a jovem alma elegante e usando toda perversidade de sua alma desqualificou a narrativa de Rosa, insinuando que a mesma teria inventado toda história, realizando uma espécie de versão metafísica do que outros já teriam feito materialmente, a saber, a multiplicação dos dias: os trinta dias da história de Rosa não teriam passado de um único dia, todo o resto sendo fruto da fantasiosa imaginação da jovem.

Conheci Hélio pessoalmente muitos anos depois, em Campos de Jordão. Ele veio de São Paulo para esta cidade havia cerca de 20 anos. Abriu um restaurante gourmet e recebia os clientes de forma muito gentil (não é pra menos, foi o restaurante mais caro que já fui na minha vida!). Disposto a tirar a limpo as coincidências que detectei lendo a revista "Encantos e Sabores" da região, pedi um vinho e atraímos, eu e Karina, o proprietário para uma conversa investigativa. Ele acabou contando muitas histórias, entre as quais pude identificar a contada em Cabine Individual. Ele me contou a versão dele da história e achei tão horrível que é melhor contar bem rápido para você, estranho leitor que me acompanha até aqui:

Sobre seu primeiro divórcio ele disse que se tratou de uma injunção da vida necessária a todos os homens, porque chega um momento em nossa vida que a gente tem que trocar de mulher, porque a parceira que serve para uma fase da vida não serve para outras. A menos que a gente não queira aprender nada ao longo da vida. Usando de um vocabulário muito inapropriado, passou a ilustrar alguns casos, com frases clichés do tipo “não vejo problema em comer uns aperitivos na rua desde que se jante em casa”. Lembrei-me imediatamente de uma passagem de “Cabine Individual”, em que ao ser indagado por Rosa dos motivos que levavam um homem casado a procurar outras mulheres fora de casa, Hélio teria respondido  desembaraçadamente:

“Para um homem, a boa esposa é como a água, necessária à vida, que não pode ser dispensada. No entanto, nada impede que, além disso, tendo a oportunidade de tomar um bom vinho ou uma marca de guaraná, ele queira provar esses outros sabores.”

Provavelmente o leitor também conhece mais alguém que veio do mesmo planeta que Hélio. No entanto, há controvérsias se Hélio era de fato o que Rosa pensou a seu respeito. Ele pode ter sido condenado injustamente por uma brincadeira que não avaliou chegasse a tais  consequências. Para Hélio, o mais importante no amor é que ele fosse submetido a provas que resistissem aos obstáculos circunstanciais. Tendo isso em mente, ele testou o amor de Rosa por ele antes de dar o passo decisivo que uniriam suas vidas. Helio, de fato, pelo que descobri em nossa conversa, origina-se do planeta Pleiggraum, famoso porque seus nativos são considerados brincalhões e parecem não saber os limites entre o que é verdadeiro e o que é sério na vida. Como um último teste para saber se Rosa o amava realmente, colocou um bilhetinho em seu paletó simulando um encontro amoroso com Cleusa, que teria sido desmarcado na última hora, e deixou o paletó em casa naquele dia ao sair para trabalhar. Hélio sabia que Rosa iria mexer no bolso de seu paletó, e ao ver o bilhetinho, colocaria em cheque a autenticidade do seu amor. Na noite anterior, ele tinha preparado tudo, inicialmente dizendo que chegaria tarde do trabalho e mudando de planos na última hora, como se tivesse levado um bolo da suposta amante e voltado mais cedo para casa. Quando chegou em casa naquela noite, constatou que Rosa não tinha passado no último teste do amor. Ela tinha lhe abandonado e em cima da mesa da sala estava o bilhetinho que tinha usado como umbral para a aceitação final do verdadeiro amor.

Quando Hélio abriu a porta do apartamento aquele dia, após um dia estafante de trabalho, achava que enfim seus temores tinham se desfeitos. Rosa era digna de seu amor e merecia toda a sua confiança, ao contrário de sua mulher anterior, a Marilza. Ao abrir a porta, ouviu o som da chave sendo arrastada pela porta. Achou aquilo estranho, era um mau presságio. Avistou ainda de longe, sobre a mesinha central da sala um bilhete. Pensou o pior, que seria um bilhete de Rosa dizendo que teria … não... era o bilhete de Cleusa, que ele tinha inventado, sobre a mesa, aberto, bem visível.

Vamos nos construindo ao longo de nossa vida, contando com os seres que podem nos ajudar nessa tarefa. A principal função do casamento deveria ser a de proporcionar o crescimento pessoal dos nubentes. Se não se fizessem tais prognósticos entre os seres, a união matrimonial deveria ser descartada, e apenas satisfações passageiras deveriam ser buscadas, assim pensava Hélio. Sua busca se revelou infrutífera ao longo dos anos até que ele encontrou seu parceiro prometido pelos céus, e que veio a ser alguém do mesmo sexo. Hélio se tornou homossexual a partir de certa altura de sua vida, e finalmente foi feliz.

Encontrei também Rosa, muitos anos mais tarde, e ela me confessou que ainda amava Hélio, embora não acreditasse que ele jamais tivesse amado alguém. “Ainda hoje correria a seus pés, se soubesse que ele me ama e não tivesse aderido à preferência por homens, como você afirma. Nós, mulheres, estamos sempre nos culpando, pela falta de diálogo, e cobrando dos homens, em momentos que eles não sabem nada”, foi a última coisa que me disse e que na hora pensei ter entendido.

Conto 1 - Almas Elegantes


Comunicado  Final - Estado Máximo de Alerta

12-09-2012 09:29

Objeto celeste identificado como Eugenia encontra-se a 145.165 km da Terra. Impacto direto com o planeta é esperado ocorrer em 15 de Setembro de 2012.

São os equívocos cometidos ao perseguir nossos objetivos que nos conduzem à realização dos anseios mais profundos e autênticos. O que parece muitas vezes tolices humanas é  reflexo do que emana das estrelas, de compulsões celestes. Porém, não são os astros no céu que nos governam, mas nós mesmos que viemos um dia das estrelas e que revelamos nosso destino aos que souberem decifrar o sinal que está visível na face de cada um.

Etevaldo era um jovem oficial do sistema de vigilância espacial das Nações Unidas, dividido entre dois mundos, e nada em sua fisionomia indicava o drama interior que afligia sua vida. Se por um lado sua prática profissional exigia uma disciplina metódica e empírica, com inquestionável capacidade de raciocínio lógico, por outro lado, tinha uma percepção quase metafísica de que a aparência das pessoas revela muito mais que a ordem local de proliferação humana no planeta Terra, além da genética e dos costumes. Pressupondo que os indivíduos são forjados em matrizes extraplanetárias, acreditava que quando encontramos duas pessoas parecidas na Terra, elas, ou seus antecedentes, provavelmente teriam vindo de um mesmo planeta. “A gente sabe quando elas têm uma origem comum quando vemos uma e nos lembramos prontamente da outra”, costumava dizer aos amigos. “Vieram do mesmo planeta”, era seu bordão preferido quando se referia à semelhança entre duas pessoas, sem suspeitar da igual possibilidade de verossimilhança interna das pessoas, ainda que as admitisse tanto no plano físico como espiritual. “Podemos encontrar seres de diversos planetas andando pela rua, cada qual com seu tempo característico, às vezes a mesma pessoa em tempo diferente de sua existência, ou personagens de sonhos próprios e alheios”. Acreditava que quando as pessoas são diferentes, mas existe afinidade entre elas, significa que elas viriam do mesmo sistema estelar, explicando porque se estabelece facilmente entre elas uma certa cumplicidade, simpatia instantânea. Se sentimos atração física por alguém, isso significa que originamos de uma mesma estrela, embora não necessariamente de um mesmo planeta. Quanto maior o número de estrelas de um sistema, maior a diversidade de atrações de seus nativos. No caso dos habitantes do sistema solar, por exemplo, acreditava que se vive numa espécie de ambiguidade existencial, pela invisibilidade da presuntiva estrela que formaria um par com o Sol, o que parece uma vulnerabilidade da tese de Etevaldo ao condicionar a caracterização dos seres ao conhecimento que se tem da sua situação de fato. Etevaldo saía do impasse afirmando que a natureza do universo é dual, e que muitos fenômenos físicos, principalmente na esfera do humano, só se realizam quando são compreendidos. E assim prosseguia o pseudocientista teorizando que os seres provenientes de sistemas duplos, ternários, etc., geralmente têm muita dificuldade de se aterem a relacionamentos amorosos com apenas um parceiro, havendo uma propensão a se relacionarem com tantas pessoas quantas forem as estrelas de seu sistema de origem. Muita tolice que não valeria a pena ser contada se algo de espantoso não tivesse  ocorrido naqueles dias finais, o que passo a contar como forma de compensar o descrédito de que eram alvo suas ideias.

Karina, nativa do planeta Gliese 51, onde habitantes eram fabricados  aos pares com destinos pré-estabelecidos, sonha que sua alma gêmea existe em outro planeta, NGS 549672, e vai em busca de seu sonho para mudar um destino que lhe parecia, a princípio, irrevogável. Engajada numa operação de resgate do ser desejado, Arturo, em um planeta distante do seu, encontra resistência por parte dele para segui-la, mas rapta-o e foge para Terra.  Entre experimentos sensoriais e entreveros intelectuais ao longo da viagem interplanetária, nada mais resta entre eles ao desembarcarem na Terra. Cada qual tomou seu rumo e quis o destino que ambos viessem morar em Niterói, uma zona franca repleta de alienígenas vizinha à cidade maravilhosa.

Enquanto isso, na Terra, Rosa decide, enfim, concretizar a viagem de seus sonhos para esquecer uma antiga frustração amorosa que teve em viagem de trem a São Paulo. O destino cuida dos elementos da trama e leva Rosa à Itália onde, ao testemunhar um crime de rua, ela se depara com estranhas coincidências. De volta a sua cidade natal, Rosa encontra Arturo, alguém muito parecido com o assassino italiano. A semelhança exerce uma mórbida atração sobre Rosa, e desencadeia mudanças inesperadas em sua vida. Ao se envolver amorosamente com o misterioso personagem, Rosa acaba presa por agentes espaciais numa batida policial, e enviada equivocadamente para Gliese 51. Em vão debateu-se Rosa para provar que não era quem as autoridades pensavam que fosse. Todos os testes de identificação comprovavam que ela era uma alienígena ilegal no planeta e deveria ser extraditada.

Abandonada por Arturo ao chegar na Terra, Karina passou por muitos lugares: San Diego, El Paso, México, Quintana Roo, Maracaibo, São Luís, Salvador e, enfim... Niterói. Fez amigos por todos os lugares por onde passou enquanto mantinha em segredo sua verdadeira identidade alienígena. Viveu discretamente e ninguém suspeitou de nada. Todos a tinham por amiga, ninguém se importou em perguntar de onde ela viera. Assim foi vivendo sua vida até encontrar o que pensou, a princípio, ser Arturo. Mas não era. Seu encontro com Etevaldo a faz questionar sua história pessoal, seu sonho lhe vem a mente, seu engano original, e enfim compreende e se apaixona com a mesma intensidade da paixão que a fez cruzar 20 anos luzes do espaço sideral. Mas o destino lhe cobrou um preço elevado demais para realizar seus sonhos mais queridos.

Originando da Cabeleira de Berenice se avistava um pequeno foco do que parecia ser fragmentos de uma estrela que foi aos poucos se expandindo, em dezenas, centenas deles, como um radiante de estrelas cadentes de observação tão usual para Etevaldo. Foi amor à primeira vista. Não há muito o que dizer quando almas gêmeas se encontram. A quantidade de estrelas cadentes foi aumentando de uma forma inédita, e em pouco tempo o firmamento desabou sobre os dois.