Pietra
ergueu os olhos para o céu estrelado. Como era belo o mundo! Que
sentimento imenso era viver! Um dia ainda viverei além do que sequer
posso imaginar, em algum mundo desconhecido neste espaço infinito,
repetiu para si mesma. Num gesto instintivo, buscou a estrela brilhante
que admirou outro dia. Alguém lhe disse se tratar de Sirius, que por
alguma razão que já não se lembrava era considerada a estrela cão. Cão
celeste! Mais à direita, aquelas estrelinhas ela conhecia, as
três-marias, três brilhantes no cinturão de um caçador imortalizado no firmamento.
Um objeto resplandeceu mais para norte, refletindo uma luz verde da
aurora que resplandecia no céu àquela hora. Muito linda a aurora que
irrompeu no céu setentrional, mas estava atrapalhando sua viagem dos
sonhos, sonhos reais dessa feita.
A
tempestade, que registrara um índice oito na escala de perturbações
magnéticas que vai de zero a nove prendeu-a um dia a mais nos Estados
Unidos, o que acabou valendo a pena pelo magnífico espetáculo oferecido
pela aurora boreal. Havia a notícia de uma outra explosão solar se
dirigindo em direção à Terra e isso poderia atrasá-la ainda mais. A tão
sonhada viagem à Itália iniciada havia apenas dois dias era interrompida
inesperadamente por eventos astronômicos, uma força maior, o que se há
de fazer? A noite passada tinha sido de transtornos, com interrupção da
energia elétrica na cidade, problemas no aquecimento do quarto do hotel.
E agora tinha mais essa ameaça de um objeto escuro das profundezas do
espaço que se dirigia em direção da Terra, com riscos reais de colisão. Que
calamitosa seria uma destruição cataclísmica do nosso planeta em
consequência de uma colisão com um objeto saido das trevas do espaço
profundo! Mas
ora, isso não iria estragar seus planos, porque a viagem à Itália tinha
finalmente começado, quer dizer, ela já tinha saído do Brasil mas ainda
não tinha chegado a seu destino. Algo lhe dizia que poderia encontrar
alguém especial nesta viagem. Então era isso, como ela não tinha pensado
nisso antes, o asteróide, ela já podia vê-lo no céu, uma diminuta
estrela, sim, era ela, um pouco alaranjada, ela via, era a estrela guia
para algum acontecimento extraordinário em sua vida. “Ah, meu Deus,
serei sempre assim”, se perguntou, “achando que o que mais quero está
para acontecer a qualquer momento?” Esse otimismo teimoso já estava lhe
cansando, mas não sabia viver de outra maneira, ela era assim. O
asteróide, “uma estrela guia?”, era a benção que faria aquele estranho
sair de seus sonhos, enfim o Sr. Certo entraria em cena. Ela não perdeu
seu tempo cultivando com tanto carinho esse sentimento e se resguardando
por toda a vida. “Mas não, deve ser bem ao contrário, pouco importa
quem amamos nessa vida, tudo perece, tudo se desfaz, tudo se rompe, o
que vale mesmo é a história que construimos, isso levamos para sempre. O
objeto do amor, sim, devemos amar, mas é da história que ele
proporciona que devemos cuidar com todo o zelo possível”. Seus
pensamentos foram interrompidos pelo barulho de uma sirene. A falta de
luz continua. Os sons das sirenes se aproximam. Alguma coisa está
acontecendo, alguém está em apuros. Uma coluna de fumaça sobe a certa
distância encobrindo o luar. Tempos sombrios são estes.
Há
pessoas que simplesmente amam, não importa quem. Amam
intransitivamente, e esperam que alguém se torne o objeto desse amor.
Esperam que alguém caiba em seus sonhos. Pietra era assim e por isso
permanecia solitária. Faltava alguém na sua história. Quando se olhava
no espelho, dizia para si mesma, sem convicção, que “seria melhor amar
incondicionalmente, até o desespero se for possível, porque é disso que
se trata o verdadeiro amor, desinteressado, gratuito”. E parecia ouvir o
espelho que retrucava “mas não podemos perder de vista aquilo que
permanece que é a história de cada amor em particular. Melhor ficar só,
Pietra! O objeto do amor perece, o que permanece é a história que se
constrói mesmo quando o amor não é correspondido, quando não existe
recíprocidade”.
Pietra
lembrou daquele estranho sonho que a perseguia, recorrentemente, em que
era uma exilada de um planeta que orbita um sistema estelar binário. No
sonho havia duas estrelas amarelas como o Sol que mantinham o pequeno
planeta iluminado a maior parte do tempo. A noite era curta nesse mundo
conhecido apenas em sonhos. Era um mundo idealizado, só mesmo em sonhos,
tudo muito certinho, padronizado. Todos inteligentes, aplicados no
trabalho e focados em seus objetivos, ou seja, vivendo para aquilo que
foram criados. Um porre! Parecia o que a gente quando criança imagina
que seria o céu. Seres perfeitos que se dedicavam integralmente à busca
de um equilíbrio entre corpo, mente e natureza, embora ninguém fosse
capaz de notar nenhum sinal de desequilibrio que justificasse tanto
empenho. Assim como na Terra existem noite, dia, amanhecer e entardecer,
em Tattoine, eis o nome do estranho astro dos sonhos de Pietra, ainda
existiam diferenças entre os entardeceres e amanheceres que dependiam de
que estrela se punha ou nascesse. Havia uma complexa composição de
claridade e escuridão no calendário deste sistema estelar, resultado do
nascer e por dos sóis distintos. Havia dias de dois sóis, dias com
apenas um dos sóis que eram diferentes se o sol no céu fosse o maior ou
menor deles, e a noite que resplandecia com milhares de estrelas
diferentes daquelas que se podia ver aqui da Terra. Muitos habitantes
desse lugar dos sonhos alcançavam estágios de consciência bem evoluídos,
que permitiam mover pequenos objetos ou por em prática dons
telepáticos, algo parecido com o que Uri Geller andou fazendo no planeta
Terra em algum momento do século passado. Foi em um sonho desses que
Pietra encontrou Andros, que lhe pareceu alguém muito familiar, talvez
por isso mesmo uma pessoa de carne e osso como ela, que vivesse aqui,
bem perto, no seu próprio mundo. Era perturbadora a sensação que
persistia após acordar sempre que tinha esses sonhos, esse personagem
cujo nome ficou sabendo sem saber como, ou por quê. Quem era esse
estranho personagem e o que esse sonho poderia significar? Pietra era
uma daquelas pessoas que sentiam na pele a iminência de um acontecimento
avassalador: o fim do mundo? O bem amado que surgiria em seu caminho ao
dobrar uma esquina? O que impregnava o seu ser era um sentimento que se
assemelha ao da vinda do Messias para os judeus, ou da segunda vinda de
Jesus para os evangélicos. O Messias viria para reinar sobre todos,
enquanto seu amado viria para reinar em sua vida.
Uma
estrela cadente riscou o céu em grande velocidade, enorme, através do
firmamento de Vega da Lira, a noroeste, para além do grupo de estrelas
da Trança de Berenice na direção da constelação de Leão. Pareceu-lhe ver
também uma nave preta e vermelha que descia através da neblina das
estrelas, desaparecendo rapidamente do campo de visão, provavelmente
fruto de sua imaginação.
Na
noite seguinte, um bólido alçava vôo do aeroporto J.F Kennedy rumo ao
velho mundo, e lá ia nossa heroína nas asas da United Airlines, rumo a
sonhos há muito acalentados, de que algo diferente a fizesse encontrar
coisas duradouras em sua vida, para que o desfilar das novas imagens que
experimentaria nessa viagem mudassem sua relação com o mundo,
eternamente igual até então. “Às vezes penso que já morri outras vezes e
que nunca poderei morrer completamente. Que sentimento estranho era
esse! E que hora mais inapropriada para ficar pensando nessas besteiras”
- era o pensamento que lhe passava pela cabeça enquanto observava as
nuvens no chão de um céu de estrelas.
Os primeiros dias em Roma foram inesquecíveis, mas agora as
malas estavam todas prontas novamente. Pietra tomou o café da manhã e
disse adeus ao Maison Vaticana. Foi-lhe difícil deixar a cidade. Agora
entendia perfeitamente o que todos dizem a respeito de Roma: uma
metrópole histórica! Ela não conseguiria ver tudo e apreciar tudo mesmo
se ficasse um mês na cidade. Precisaria de meses. Após cinco dias
intensos, teve que dizer adeus à bela cidade romana e deixá-la para
trás.
Acordou
muito cedo pois o trem para Nápoles partia as 6h45. Ao chegar na cidade
napolitana, depois de deixar as malas no hotel, fazia um primeiro
reconhecimento da cidade caminhando pelas ruas quando presenciou uma
briga. Viu um homem segurando uma faca numa posição de golpe, de onde podia-se ver o sangue gotejando. Foi tudo muito rápido, ela não conseguiu discernir nada do que estava acontecendo.
- Tirem a faca da mão dele! - ouviu.
O
homem saiu em disparada e passou por ela, quase se esbarraram, e ela
pode ver num relance, com a força de algo que ela não conseguia definir,
os olhos do assassino, que a fitou do vazio de sua alma, fazendo-lhe
estremecer. Era o semblante de uma fera saciada. Passou desembaladamente
por ela correndo até o final da rua e virou uma esquina na direção da
Piazza Bellini.
- Puttana madona... la testa piú - alguém gritou
-
A vítima encontrava-se agonizante na calçada. Ligaram para os
bombeiros, uma grande quantidade de gente foi se aproximando. Havia
nervosismo e desespero nas vozes das pessoas. Algumas tentavam estancar o
sangue do jovem rapaz mas com insucesso. Em menos de 15 minutos o belo
jovem jazia morto e uma poça de sangue se formou sob seu corpo,
escorrendo lentamente em direção ao meio-fio.
Juro que vou … desmaiar, foi a última coisa de que se lembra antes de acordar num lugar desconhecido e gelado.
O
jornal do dia seguinte noticiava que o crime se tratava de uma vendetta
amorosa, que a vítima tinha um relacionamento com a mulher do
assassino, que o mesmo tinha “simples e efetivamente silenciado o
ofensor”. A reportagem explorava os dois lados de um crime passional,
sua barbaridade por ter sido um assassinato a sangue frio e a questão da
honra do marido traído, mencionando em certo trecho que “vita promiscua
non ha mai fatto nulla di buono a nessuno”. A tragédia porém não parava
aí, porque o assassino infligiu, posteriormente, danos fatais à mulher
por causa da traição, e também nela enterrou a faca, vingando-se do
ultraje.
Pietra
certamente sentia e não o negava, enquanto um estremecimento íntimo
ameaçava o que ela pensava a respeito de si mesma, um certo tipo de
admiração por um homem que tivesse brandido friamente uma faca, de aço
frio, com coração, para limpar sua honra, mas temia-o igualmente,
terrivelmente, tanto mais por ele se assemelhar com ..., era ele, o
homem dos seus sonhos. Havia um pesadelo inscrutado na mente da jovem
brasileira. Quando avistou aquela face tão familiar e tão estranha ao
mesmo tempo, temeu que essa insistente e tímida esperança de que alguém a
amasse tivesse lhe levando à loucura, ela agora misturando sonhos com
realidade, na ânsia de que alguém, em algum recanto desse universo
pensasse nela, infinitamente, em algum momento, em algum lugar. “Quem
sou eu afinal, onde estou de verdade naquilo que posso reconhecer como
sendo eu mesma? O que é sonho e o que é real nessa história toda?”
Pietra ainda não sabia que era uma entre tantas outras pietras, neste e
em outros mundos, e que começava a perceber os acontecimentos a seu
redor a partir de várias realidades que ela desconhecia até então. Ela
pensa que está enlouquecendo mas percebe cada vez mais nitidamente que
não é possível acreditar na existência de uma realidade objetiva.
Condicionamo-nos a acreditar que apenas uma história, que chamaríamos
vencedora, é a que conta, que devemos consolidar. Pietra descobrirá que
não devemos reduzir tão dramaticamente o que somos a essa história
predominante.
O celular tocou. Era do Brasil.
- Bom dia! Gostaria de falar com a Sra. Pietra.
- Sim, é ela, boa tar..., desculpa, bom dia para você!
-
Sra, obtive suas referências pelo Sr. Leonardo. Preciso do serviço de
um ghost writer e ele me deu seu telefone. A Sra. está disponível para o
serviço?
- Bem, estou viajando, na Itália, mas do que se trata especificamente o trabalho.
-
Sra., o assunto não pode ser tratado por telefone. Espero a sra. voltar
de viagem e ligo novamente se houver interesse. A sra. não reclamará
dos honorários, esteja certa.
- OK, ligue-me novamente em três semanas.
- De acordo, sra. Bom proveito e boa viagem de retorno.
Que
agradável e ao mesmo tempo estranho timbre de voz desse senhor! Esqueci
de perguntar-lhe o nome. Do que se tratará? Bem isso pode esperar.
Ainda tenho 17 dias de Itália, concluiu com um gesto de cabeça como se
quisesse deixar aqueles devaneios de lado pois sua próxima atração era
Pompéia.
Chegou
na estação central de Nápoles e procurou a estação Circumvesuviana.
Dirigiu-se à bilheteria e comprou um bilhete para o trem com direção à
Sorrento, descendo em seguida para a estação. A viagem foi bem
cansativa. O trem era muito velho e as pessoas extremamente mal
educadas. Era um empurra-empurra, passando na sua frente, pisando no seu
pé, um caos. Não valia à pena olhar a paisagem pela janela, pois só o
que se via eram lugares sujos, mal cuidados e com várias pilhas de lixo.
Desçeu na estação Pompei Scavi - Villa dei Misteri.
Deixou
as malas na mini estação e foi em direção à bilheteria das escavações.
Na bilheteria, começou uma grande confusão quando um casal de americanos
entrou na frente de todo mundo para comprar os ingressos na maior cara
de pau. Muitas pessoas começaram a reclamar e eles fingiram que não era
com eles. A moça que vendia os bilhetes não quis atendê-los e os mandou
para o final da fila. Enfim, Pietra entrou nas escavações e foi
apreciando o que milhares de olhos testemunhavam todos os anos, os
corpos petrificados de Pompéia, a famosa réplica do Fauno. O lugar
fervilhava de turistas. Parou para encher sua garrafinha de água em um
bebedouro local. Algumas vezes se sentia perdida, não sabia exatamente
onde estava apesar de tantas placas e mapas espalhados por toda parte.
Não conseguia tirar da cabeça a voz da pessoa desconhecida que tinha
ligado para ela do Brasil. Que curioso que Leonardo tenha lhe indicado
seu nome. Por que será? Meus Deus, o que estou fazendo aqui no meio de
todas essas ruínas? E aquele rosto do assassino, parecia vê-lo em toda
parte agora. Parecia-lhe tê-lo visto algumas vezes, no rosto de
diferentes turistas. Não, não podia continuar aqui, tinha que partir. A
imagem daquele homem a perseguia. Voltou correndo para a estação e
comprou a passagem para Sorrento. Ao chegar, deixou as coisas no hotel e
foi andar pela cidade, para esquecer Nápoles.
“Sorrento é linda!” Sentiu fome e entrou em um restaurante muito bonito
e charmoso. Pediu uma salada, uma soda e um frango ensopado. Ao fundo,
sobre o Mediterrâneo, uma vista magnifíca do Vesúvio que lhe fazia
dividir a atenção com a deliciosa torta caprese que pediu de sobremesa.
Depois de passar por tanta ruína, chegar num lugar como Sorrento estava
sendo muito bom, até que ela ouviu o grito “Tirem a faca da mão dele!”
E aconteceu de novo, a mesma cena, o crime, o olhar de fera saciada. O destino estava querendo dizer alguma coisa a Pietra.
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