domingo, 8 de julho de 2012

Cap II - Viagem à Itália


Pietra ergueu os olhos para o céu estrelado. Como era belo o mundo! Que sentimento imenso era viver! Um dia ainda viverei além do que sequer posso imaginar, em algum mundo desconhecido neste espaço infinito, repetiu para si mesma. Num gesto instintivo, buscou a estrela brilhante que admirou outro dia. Alguém lhe disse se tratar de Sirius, que por alguma razão que já não se lembrava era considerada a estrela cão. Cão celeste! Mais à direita, aquelas estrelinhas ela conhecia, as três-marias, três brilhantes no cinturão de um caçador imortalizado no firmamento. Um objeto resplandeceu mais para norte, refletindo uma luz verde da aurora que resplandecia no céu àquela hora. Muito linda a aurora que irrompeu no céu setentrional, mas estava atrapalhando sua viagem dos sonhos, sonhos reais dessa feita.

A tempestade, que registrara um índice oito na escala de perturbações magnéticas que vai de zero a nove prendeu-a um dia a mais nos Estados Unidos, o que acabou valendo a pena pelo magnífico espetáculo oferecido pela aurora boreal. Havia a notícia de uma outra explosão solar se dirigindo em direção à Terra e isso poderia atrasá-la ainda mais. A tão sonhada viagem à Itália iniciada havia apenas dois dias era interrompida inesperadamente por eventos astronômicos, uma força maior, o que se há de fazer? A noite passada tinha sido de transtornos, com interrupção da energia elétrica na cidade, problemas no aquecimento do quarto do hotel. E agora tinha mais essa ameaça de um objeto escuro das profundezas do espaço que se dirigia em direção da Terra, com riscos reais de colisão. Que  calamitosa seria uma destruição cataclísmica do nosso planeta em consequência de uma colisão com um objeto saido das trevas do espaço profundo! Mas ora, isso não iria estragar seus planos, porque a viagem à Itália tinha finalmente começado, quer dizer, ela já tinha saído do Brasil mas ainda não tinha chegado a seu destino. Algo lhe dizia que poderia encontrar alguém especial nesta viagem. Então era isso, como ela não tinha pensado nisso antes, o asteróide, ela já podia vê-lo no céu, uma diminuta estrela, sim, era ela, um pouco alaranjada, ela via, era a estrela guia para algum acontecimento extraordinário em sua vida. “Ah, meu Deus, serei sempre assim”, se perguntou, “achando que o que mais quero está para acontecer a qualquer momento?” Esse otimismo teimoso já estava lhe cansando, mas não sabia viver de outra maneira, ela era assim. O asteróide, “uma estrela guia?”, era a benção que faria aquele estranho sair de seus sonhos, enfim o Sr. Certo entraria em cena. Ela não perdeu seu tempo cultivando com tanto carinho esse sentimento e se resguardando por toda a vida. “Mas não, deve ser bem ao contrário, pouco importa quem amamos nessa vida, tudo perece, tudo se desfaz, tudo se rompe, o que vale mesmo é a história que construimos, isso levamos para sempre. O objeto do amor, sim, devemos amar, mas é da história que ele proporciona que devemos cuidar com todo o zelo possível”. Seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de uma sirene. A falta de luz continua. Os sons das sirenes se aproximam. Alguma coisa está acontecendo, alguém está em apuros. Uma coluna de fumaça sobe a certa distância encobrindo o luar. Tempos sombrios são estes.
Há pessoas que simplesmente amam, não importa quem. Amam intransitivamente, e esperam que alguém se torne o objeto desse amor. Esperam que alguém caiba em seus sonhos. Pietra era assim e por isso permanecia solitária. Faltava alguém na sua história. Quando se olhava no espelho, dizia para si mesma, sem convicção, que “seria melhor amar incondicionalmente, até o desespero se for possível, porque é disso que se trata o verdadeiro amor, desinteressado, gratuito”. E parecia ouvir o espelho que retrucava “mas não podemos perder de vista aquilo que permanece que é a história de cada amor em particular. Melhor ficar só, Pietra! O objeto do amor perece, o que permanece é a história que se constrói mesmo quando o amor não é correspondido, quando não existe recíprocidade”.

Pietra lembrou daquele estranho sonho que a perseguia, recorrentemente, em que era uma exilada de um planeta que orbita um sistema estelar binário. No sonho havia duas estrelas amarelas como o Sol que mantinham o pequeno planeta iluminado a maior parte do tempo. A noite era curta nesse mundo conhecido apenas em sonhos. Era um mundo idealizado, só mesmo em sonhos, tudo muito certinho, padronizado. Todos inteligentes, aplicados no trabalho e focados em seus objetivos, ou seja, vivendo para aquilo que foram criados. Um porre!  Parecia o que a gente quando criança imagina que seria o céu. Seres perfeitos que se dedicavam integralmente à busca de um equilíbrio entre corpo, mente e natureza, embora ninguém fosse capaz de notar nenhum sinal de desequilibrio que justificasse tanto empenho. Assim como na Terra existem noite, dia, amanhecer e entardecer, em Tattoine, eis o nome do estranho astro dos sonhos de Pietra, ainda existiam diferenças entre os entardeceres e amanheceres que dependiam de que estrela se punha ou nascesse. Havia uma complexa composição de claridade e escuridão no calendário deste sistema estelar, resultado do nascer e por dos sóis distintos. Havia dias de dois sóis, dias com apenas um dos sóis que eram diferentes se o sol no céu fosse o maior ou menor deles, e a noite que resplandecia com milhares de estrelas diferentes daquelas que se podia ver aqui da Terra.  Muitos habitantes desse lugar dos sonhos alcançavam estágios de consciência bem evoluídos, que permitiam mover pequenos objetos ou por em prática dons telepáticos, algo parecido com o que Uri Geller andou fazendo no planeta Terra em algum momento do século passado. Foi em um sonho desses que Pietra encontrou Andros, que lhe pareceu alguém muito familiar, talvez por isso mesmo uma pessoa de carne e osso como ela, que vivesse aqui, bem perto, no seu próprio mundo.  Era perturbadora a sensação que persistia após acordar sempre que tinha esses sonhos, esse personagem cujo nome ficou sabendo sem saber como, ou por quê. Quem era esse estranho personagem e o que esse sonho poderia significar? Pietra era uma daquelas pessoas que sentiam na pele a iminência de um acontecimento avassalador: o fim do mundo? O bem amado que surgiria em seu caminho ao dobrar uma esquina? O que impregnava o seu ser era um sentimento que se assemelha ao da vinda do Messias para os judeus, ou da segunda vinda de Jesus para os evangélicos. O Messias viria para reinar sobre todos, enquanto seu amado viria para reinar em sua vida.

Uma estrela cadente riscou o céu em grande velocidade, enorme, através do firmamento de Vega da Lira, a noroeste, para além do grupo de estrelas da Trança de Berenice na direção da constelação de Leão. Pareceu-lhe ver também uma nave preta e vermelha que descia através da neblina das estrelas, desaparecendo rapidamente do campo de visão, provavelmente fruto de sua imaginação.

Na noite seguinte, um bólido alçava vôo do aeroporto J.F Kennedy rumo ao velho mundo, e lá ia nossa heroína nas asas da United Airlines, rumo a sonhos há muito acalentados, de que algo diferente a fizesse encontrar coisas duradouras em sua vida, para que o desfilar das novas imagens que experimentaria nessa viagem mudassem sua relação com o mundo, eternamente igual até então. “Às vezes penso que já morri outras vezes e que nunca poderei morrer completamente. Que sentimento estranho era esse! E que hora mais inapropriada para ficar pensando nessas besteiras” - era o pensamento que lhe passava pela cabeça enquanto observava as nuvens no chão de um céu de estrelas.

Os primeiros dias em Roma foram inesquecíveis, mas agora as malas estavam todas prontas novamente. Pietra tomou o café da manhã e disse adeus ao Maison Vaticana. Foi-lhe difícil deixar a cidade. Agora entendia perfeitamente o que todos dizem a respeito de Roma: uma metrópole histórica! Ela não conseguiria ver tudo e apreciar tudo mesmo se ficasse um mês na cidade. Precisaria de meses. Após cinco dias intensos, teve que dizer adeus à bela cidade romana e deixá-la para trás.

Acordou muito cedo pois o trem para Nápoles partia as 6h45. Ao chegar na cidade napolitana, depois de deixar as malas no hotel, fazia um primeiro reconhecimento da cidade caminhando pelas ruas quando presenciou uma briga. Viu um homem segurando uma faca numa posição  de  golpe,  de  onde  podia-se  ver  o  sangue  gotejando.  Foi tudo muito rápido, ela não conseguiu discernir nada do que estava acontecendo.

- Tirem a faca da mão dele! - ouviu.

O homem saiu em disparada e passou por ela, quase se esbarraram, e ela pode ver num relance, com a força de algo que ela não conseguia definir, os olhos do assassino, que a fitou do vazio de sua alma, fazendo-lhe estremecer. Era o semblante de uma fera saciada. Passou desembaladamente por ela correndo até o final da rua e virou uma esquina na direção da Piazza Bellini.

- Puttana madona... la testa piú -  alguém gritou

- A vítima encontrava-se agonizante na calçada. Ligaram para os bombeiros, uma grande quantidade de gente foi se aproximando. Havia nervosismo e desespero nas vozes das pessoas. Algumas tentavam estancar o sangue do jovem rapaz mas com insucesso. Em menos de 15 minutos o belo jovem jazia morto e uma poça de sangue se formou sob seu corpo, escorrendo lentamente em direção ao meio-fio.

Juro que vou … desmaiar, foi a última coisa de que se lembra antes de acordar num lugar desconhecido e gelado.

O jornal do dia seguinte noticiava que o crime se tratava de uma vendetta amorosa, que a vítima tinha um relacionamento com a mulher do assassino, que o mesmo tinha “simples e efetivamente silenciado o ofensor”. A reportagem explorava os dois lados de um crime passional, sua barbaridade por ter sido um assassinato a sangue frio e a questão da honra do marido traído, mencionando em certo trecho que “vita promiscua non ha mai fatto nulla di buono a nessuno”. A tragédia porém não parava aí, porque o assassino infligiu, posteriormente, danos fatais à mulher por causa da traição, e também nela enterrou a faca, vingando-se do ultraje.

Pietra certamente sentia e não o negava, enquanto um estremecimento íntimo ameaçava o que ela pensava a respeito de si mesma, um certo tipo de admiração por um homem que tivesse brandido friamente uma faca, de aço frio, com coração, para limpar sua honra, mas temia-o igualmente, terrivelmente, tanto mais por ele se assemelhar com ..., era ele, o homem dos seus sonhos. Havia um pesadelo inscrutado na mente da jovem brasileira. Quando avistou aquela face tão familiar e tão estranha ao mesmo tempo, temeu que essa insistente e tímida esperança de que alguém a amasse tivesse lhe levando à loucura, ela agora misturando sonhos com realidade, na ânsia de que alguém, em algum recanto desse universo pensasse nela, infinitamente, em algum momento, em algum lugar. “Quem sou eu afinal, onde estou de verdade naquilo que posso reconhecer como sendo eu mesma? O que é sonho e o que é real nessa história toda?” Pietra ainda não sabia que era uma entre tantas outras pietras, neste e em outros mundos, e que começava a perceber os acontecimentos a seu redor a partir de várias realidades que ela desconhecia até então. Ela pensa que está enlouquecendo mas percebe cada vez mais nitidamente que não é possível acreditar na existência de uma realidade objetiva. Condicionamo-nos a acreditar que apenas uma história, que chamaríamos vencedora, é a que conta, que devemos consolidar. Pietra descobrirá que não devemos reduzir tão dramaticamente o que somos a essa história predominante.

O celular tocou. Era do Brasil.

- Bom dia! Gostaria de falar com a Sra. Pietra.

- Sim, é ela, boa tar..., desculpa, bom dia para você!

- Sra, obtive suas referências pelo Sr. Leonardo. Preciso do serviço de um ghost writer e ele me deu seu telefone. A Sra. está disponível para o serviço?

- Bem, estou viajando, na Itália, mas do que se trata especificamente o trabalho.

- Sra., o assunto não pode ser tratado por telefone. Espero a sra. voltar de viagem e ligo novamente se houver interesse. A sra. não reclamará dos honorários, esteja certa.

- OK, ligue-me novamente em três semanas.

- De acordo, sra. Bom proveito e boa viagem de retorno.

Que agradável e ao mesmo tempo estranho timbre de voz desse senhor! Esqueci de perguntar-lhe o nome. Do que se tratará? Bem isso pode esperar. Ainda tenho 17 dias de Itália, concluiu com um gesto de cabeça como se quisesse deixar aqueles devaneios de lado pois sua próxima atração era Pompéia.

Chegou na estação central de Nápoles e procurou a estação Circumvesuviana. Dirigiu-se à bilheteria e comprou um bilhete para o trem com direção à Sorrento, descendo em seguida para a estação. A viagem foi bem cansativa. O trem era muito velho e as pessoas extremamente mal educadas. Era um empurra-empurra, passando na sua frente, pisando no seu pé, um caos.  Não valia à pena olhar a paisagem pela janela, pois só o que se via eram lugares sujos, mal cuidados e com várias pilhas de lixo. Desçeu na estação Pompei Scavi - Villa dei Misteri.

Deixou as malas na mini estação e foi em direção à bilheteria das escavações. Na bilheteria, começou uma grande confusão quando um casal de americanos entrou na frente de todo mundo para comprar os ingressos na maior cara de pau. Muitas pessoas começaram a reclamar e eles fingiram que não era com eles. A moça que vendia os bilhetes não quis atendê-los e os mandou para o final da fila. Enfim, Pietra entrou nas escavações e foi apreciando o que milhares de olhos testemunhavam todos os anos, os corpos petrificados de Pompéia, a famosa réplica do Fauno. O lugar fervilhava de turistas. Parou para encher sua garrafinha de água em um bebedouro local. Algumas vezes se sentia perdida, não sabia exatamente onde estava apesar de tantas placas e mapas espalhados por toda parte. Não conseguia tirar da cabeça a voz da pessoa desconhecida que tinha ligado para ela do Brasil. Que curioso que Leonardo tenha lhe indicado seu nome. Por que será? Meus Deus, o que estou fazendo aqui no meio de todas essas ruínas? E aquele rosto do assassino, parecia vê-lo em toda parte agora. Parecia-lhe tê-lo visto algumas vezes, no rosto de diferentes turistas. Não, não podia continuar aqui, tinha que partir. A imagem daquele homem a perseguia. Voltou correndo para a estação e comprou a passagem para Sorrento. Ao chegar, deixou as coisas no hotel e foi andar pela cidade, para esquecer Nápoles.  

    “Sorrento é linda!” Sentiu fome e entrou em um restaurante muito bonito e charmoso. Pediu uma salada, uma soda e um frango ensopado. Ao fundo, sobre o Mediterrâneo, uma vista magnifíca do Vesúvio que lhe fazia dividir a atenção com a deliciosa torta caprese que pediu de sobremesa. Depois de passar por tanta ruína, chegar num lugar como Sorrento estava sendo muito bom, até que ela ouviu o grito “Tirem a faca da mão dele!”

    E aconteceu de novo, a mesma cena, o crime, o olhar de fera saciada. O destino estava querendo dizer alguma coisa a Pietra.

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