quarta-feira, 13 de junho de 2012

Cap V - A Chegada na Terra



A viagem estava sendo tranquila salvo algumas inesperadas turbulências ao longo do percurso interestelar. O maior problema ocorreu quando passavam próximo ao planeta Netuno, quando a sonda sofreu um impacto que por alguma razão passou despercebido pelo sistema de rastreio, não dando tempo hábil para uma manobra evasiva. De repente, se sentiram perdidos no nada, à deriva. O mapeamento dos corpos celestes nas proximidades terrestre não era muito confiável, as regiões interiores desse sistema solar amarelo eram cheias de surpresas. A imagem da tela de navegação apagou completamente, o que indicava algum dano na câmera principal da aeronave, embora ela fosse de um material apropriado para enfrentar situações parecidas. A nave perdeu a estabilidade por um momento ao se chocar em um meteorito maior e emperrou seus painéis solares perdendo a direção do Sol, reduzindo ainda mais a iluminação ambiente e, ao mesmo tempo, a perda de sinal por algum problema na câmera reserva fez com que perdessem a visibilidade da rota. O terror começou a tomar conta dos dois alienígenas. Apressaram a buscar nos arquivos eletrônicos o que poderia ser a causa do problema no momento que o sinal externo foi lançado sobre a tela central à frente de Hadros. Atravessavam uma grande concentração de poeira que pelas informações do sistema de prospecção media alguns milhares de quilômetros. Levou apenas poucos segundos para que a tela do computador mostrasse a origem da turbulência como sendo causada por uma imensa nuvem de poeira solta no espaço, uma autêntica tempestade de poeira(1).  

Não sei se era a ansiedade por estar tão próximo do destino final, mas Hadros sentiu a turbulência de maneira exagerada e temeu que o pior acontecesse. A longa viagem desfilou rapidamente pela sua mente, desde a saída do seu planeta natal, situado em NGS 549672, no coração da constelação de Carina, por onde Susy passou para pegá-lo. Olhou para ela um pouco acima e a sua direita, submetendo-se ao processo de condicionamento para adaptação gravitacional às novas condições que sua compleição física teria que se sujeitar no novo planeta, e nada parecia atemorizá-la. Todo alienígena que chegava na Terra tinha que passar por esse procedimento de adaptação da sua imagem a padrões que não assustassem os terráqueos, além de recondicionamento de hábitos exóticos. No caso dos dois viajantes, eles teriam que reduzir o número de braços de 8 para 2, adaptar seus olhos à faixa eletromagnética predominante na estrela solar, e abandonarem o estranho hábito de derramarem creme azedo nas orelhas pela manhã. Recordou que a abordagem de Suzy a NGS 549672 tinha sido mais dramática do que o pânico que ele experimentava agora, a linha de rumo que ela teve que enfrentar por conta da curvatura do espaço naquela região da constelação de Cygnus, porta de entrada para o planeta azul, era muito mais impactiva sobre estes módulos espaciais que chegavam a seus destinos completamente ultrapassados tecnologicamente, e literalmente varado de furos de raios cósmicos de alta energia.  

A viagem poderia ter sido bem mais curta, não fosse a vaidade das mulheres que são iguais em qualquer rincão do universo. Poderia ter sido Hadros a passar por Gliese 581 para pegar Suzy, pois este entreposto interestelar fica a apenas 20 anos luzes da Terra, na constelação de Libra, e assim rapidinho completaríam todo o percurso. Mas não, se fosse Hadros a iniciar a viagem, pelo efeito que o paradoxo einsteiniano dos gêmeos causa sobre os viajantes interestelares, ele ficaria mais jovem que Suzy, e quando chegasse à Terra estaria 15 anos mais jovem que ela. Isso era inadmissível para sua companheira de viagem, e certamente para Hadros  também, como veio a perceber muito tempo mais tarde quando já vivia na Terra havia alguns anos.

Bem, essa será a estória que eles contarão para os terráqueos quando chegarem ao dito planeta, porque é assim que os terráqueos pensam que funcionam as viagens espaciais, mas tudo pode ser diferente. Segundo Hadros, pelo que pesquisou a bordo de sua nave enquanto viajava para a Terra, os cientistas locais estão equivocados em relação às distâncias dos astros porque professam “uma teoria furada de que o universo está em expansão, como se estivesse explodindo. Não tem nada explodindo. Alguém está ouvindo algum barulho de explosão?” Hadros não conhece o escritor Saramago, porque se o conhecesse pensaria que teria sido ele a bolar tal teoria. Hadros me contou um tempo depois, quando o conheci já com o pseudônimo de Hélio, em Niterói, que “os cientistas observam a luz emitida por galáxias cujo espectro se altera como se elas estivessem se movendo em relação a nós”. Desculpem-me os leitores qualquer imprecisão na terminologia empregada, sou leigo em Astronomia. Eles teriam notado que quase todas se afastavam da Terra e concluído que era como se o universo estivesse se explodindo. “De fato, o que acontece”, explicou-me Hadros, “é que a luz que vem das estrelas e galáxias perdem gradualmente energia à medida que viaja pelo espaço de uma forma semelhante ao que se observa com o efeito das velocidades de afastamento. É isso na verdade o que acontece e, de fato, o universo é muito menor que os cientistas terráqueos pensam, as viagens interplanetárias mais factíveis do que eles imaginam. Se não fosse desse jeito, a Terra seria um deserto. Nativos genuínos do planeta Água são pouco férteis e reproduzem pouco.”

A história desses alienígenas poderia ser contada de forma diferente por um outro narrador que vê o universo de forma diferente de mim, e que por vê-lo assim, o universo torna-se realmente diferente. Há  muita controvérsia nessa área, porque as viagens podem ser de um tipo ou de outro, por conta do comportamento dual do fenômeno de viagens espaciais. Há também outras teorias de viagem no tempo, algumas bem exóticas, como a que pessoas especialmente dotadas realizam através de rituais secretos inacessíveis para narradores comuns como eu.

As manobras de direcionamento final rumo à Terra são arriscadas porque, se perdessem o correto ângulo de alvo para atingir a órbita desejada, poderiam perder irreversivelmente a janela de entrada no planeta. As maiores dificuldades são os planetas Júpiter e Marte que atuam com espécie de guardiães da Terra no sistema solar, o primeiro com sua enorme influência gravitacional sobre tudo que se aproxima dessa zona espacial, o segundo como um … como um … qual é mesmo a história? Muitos acidentes já ocorreram com incautos viajantes que não fazem a conta corretamente, sobretudo se a chegada acontece a partir de um ângulo oriental onde Áries predomina com seu poder zodiacal. Vocês devem estar perguntando o que astrologia tem a ver com isso, e têm toda razão. Quem a usou para fazer seus cálculos de chegada certamente se acidentou fatalmente e hoje jaz nos oceanos jupiterianos ou nos canais marcianos. Quanto a nossos heróis, até o presente, graças ao grande estágio tecnológico de suas civilizações no quesito viagens interplanetárias, tudo saía bem a contento. Salvo um pequeno emperramento em um dos limpadores de pára-brisa causado por uma inesperada chuva de meteoros, a redução da iluminação causado pelo emperramento de um painel solar e a inoperabilidade da câmera principal da nave, tudo funcionava a contento.

Há quem pense diferente, que as estrelas não são tão apáticas ao destino  humano como querem os cientistas, mas isso será tratado mais adiante, quando as causas por trás da aparente arbitrariedade dos eventos tornarem-se manifestas.

O firmamento começava a ter o aspecto esperado para as vizinhanças do planeta de destino. As estrelas se configuravam com as formas previstas nos mapas celestes visto da Terra. Ao passar próxima da lua terrestre foi possível observar o relevo cinzento, escarpado e, ao mesmo tempo, cheio de crateras do lado que permanece sempre oculto para os terráqueos. É um espetáculo tantalizante. Há milhões de anos, a Lua não era o único satélite terreste. Havia uma companheira menor que a pastoreava e que, a se deduzir das narrativas de viajantes espaciais que por aqui passaram há milhões de anos, compunham um belo cenário no planeta ainda selvagem e hostil às civilizações mais avançadas.  As cicatrizes desse fatídico pas-de-deux cósmico ainda podem ser visíveis no lado “oculto” da lua que é substancialmente diferente do seu lado romântico visível, onde contam ser possível observar um casal apaixonado se beijarem, ou São Jorge montado a cavalo matando um dragão, entre outras miragens. É como se ela guardasse escondido o seu duplo, a sua face que não ousa mostrar aos terráqueos. Há mais tempo ainda, há cerca de quatro bilhões de anos no passado, um planeta melancólico chocou-se com Gaia e os escombros lançados ao espaço formaram duas luas que também vieram a se colidir posteriormente, embora de forma bem menos dramática. O sistema triplo que se formou após este choque inicial não era estável. A aparente estabilidade inicial não passava de uma armadilha para a catástrofe anunciada pelas leis naturais.

Chegou, enfim, a hora de descer no planeta. Na direção norte havia uma aurora dançando na alta atmosfera devido a alguma tempestade magnética recente. No horizonte, um fino traço de tom violeta radioativo. Havia muita expectativa entre os tripulantes. Existe muita desinformação sobre a Terra nos demais planetas do universo. Há quem julgue ser isso aqui um paraíso e outros que consideram-na um inferno, como se um excluísse a possibilidade do outro e não dependesse do ângulo de entrada em seus domínios. Os dois mundos de certo coexistem, algumas pessoas vivendo no paraíso e outras no inferno. Por isso é de suma importância como é realizado o acesso ao planeta. Tudo se resume a uma questão de ângulo de incidência na entrada atmosférica.

Enfim pousamos no deserto de Mojave nos EUA após riscarmos o céu americano feito um meteoro incandecendo o ar circundante. Desculpe o leitor por escrever como se estivesse a bordo da nave. Essa história me empolga tanto que me sinto parte dela. A luminosidade resultante do fenômeno de compressão adiabática da atmosfera do planeta nos cegou durante vários minutos, e foi difícil acostumarmos com a claridade deste estranho planeta azul onde chegamos. Da escotilha da nave Isilda percebemos que dois caças nos acompanhavam desde a alta atmosfera. Tecnicamente falando, estávamos sendo sequestrados. A voz do piloto se fez ouvir no nosso sistema radiofônico, ordenando-nos todo o procedimento que deveríamos seguir até pousar numa imensa base militar cuja pista de pouso se perdia na turbulência de calor do horizonte. Para alguma coisa ao menos lhe estavam servindo, a nossos... não, não posso chamá-los de heróis, bem, para alguma coisa lhe serviram o estudo do dialeto local, mesmo estando eles usando o decodificador geral de idiomas no seu sistema auditivo. Vales escaldantes e secos se estendiam a perder de vista, muito ao longe se via montanhas com seus picos cobertos de neve. Um pouco antes do pouso vimos campos de flores selvagens colorindo desertos que terminavam no mar, paisagens desoladas cheias de cactos imponentes em suas mais variadas formas. Até sermos conduzidos em um comboio para uma espécie de alfândega espacial, atravessamos uma área plana com rara vegetação seca em um ponto ou outro. Cactos de uma beleza nunca mais vista se sobressaíam da desolação geral. O sol se punha a oeste e seus raios douravam as dunas e tornavam carmins os cânions que rasgavam o chão de maneira impressionante.

Antes de sairem da nave, os alienígenas foram interpelados para saberem se estavam adequadamente vestidos, se usavam algum equipamento para adaptação às condições locais da Terra, um minucioso questionário foi feito pelas autoridades locais. Suzy usava um pó negro enfeitando os olhos que lhe dava um aspecto bastante misterioso. Vestia uma túnica muito branca, talvez o equivalente ao linho do seu planeta, e sem mangas, coberta por um tecido com atavios de ouro. Brincos com pingentes pendiam-se-lhe das orelhas e nos pulsos diversas pulseiras. Suas unhas eram negras e compridas. Causou um certo alívio entre os oficiais alfandegários saber que os visitantes não estavam nus. Isso soou para Hadros como a primeira indicação das compulsões emocionais primitivas dos habitantes do novo planeta.  Suzy vestia um collant laranja tendo uma insígnia que pelos padrões locais se assemelhava ao símbolo de paz e amor. Seu capacete espacial era preto com algumas listas brancas que lhe dava um aspecto pouco amigável. Hadros tinha um visual militar, usando algo como couro preto com fileira dupla de botões, e dava uma impressão geral, à primeira vista, de um oficial nazista. Vestia um capacete em forma de cubo. As roupas disponíveis para ele tinha sido recolhidas às pressas por Suzy no momento da fuga de NGS 549672 e tudo parecia muito ridículo. A única opção a essa vestimenta teria sido algo parecido com um traje de mergulho para altas profundezas que possuía um aparato de respiração, que Suzy cogitou ser útil caso precisassem de ar com composição semelhante ao do seu ambiente natal em termos de química e pressurização. Tal traje indicaria a existência de diferenças de pressão consideráveis como aquelas entre humanos similarmente vestidos em um mergulho ao oceano profundo.

Tudo parecia muito estranho aos visitantes. O corpo dos terráqueos não lhes pareciam bem definidos. Eram núcleos energéticos mais densos envoltos num campo multicolorido de energias que se moviam em sucessivos movimentos ascendentes e descendentes, de alguns mais intensos que outros, vórtices turbilhonados em uns, mais suaves em outros. DIziam ser normal, fazia parte da adaptação de um ambiente planetário a outro.

“Nós vos saudamos amigos alienígenas, e vos desejamos que sejam bem vindos ao planeta Terra, o planeta da oportunidade cósmica. Lembramos-vos, contudo, que vossa estada no planeta Terra é provisório e deverão retornar a este cosmódromo dentro de exatos um ano. Não tentem fugir ou esconder porque não há nenhum lugar no planeta onde vocês possam se esconder do nosso sistema de vigilância”. Assim nos saudou o oficial alfandegário. Todas essas chegadas interplanetárias devem chegar à Terra nesse espaço-porto porque os alienígenas recebem o visto por apenas 1 ano, renovável por mais um ano apenas, irrevogavelmente. Foram submetidos a extensivos exames e fichamento. Colocaram um chip no corpo de cada um e mapearam suas íris. Devíam permanecer em uma espécie de quarentena, ocasião em que seriam submetidos a uma cirurgia nos olhos para modificá-los sob a argumentação que tinham olhos de inseto e que isso atrapalharia a convivência no planeta, revelando imediatamente o fato de serem alienígenas.

Chegaram juntos à Terra, Hadros e Suzy, e passaram à consecução do plano de permanência no planeta. A primeira coisa que fizeram foi sair dos EUA e ir para um país perdido no planeta, onde ninguém nunca pudesse encontrá-los. Planejavam providenciar, oportunamente, meios de retirar o chip de rastreio de seus corpos e realizar uma operação da íris para mudar suas chances de identificação, o máximo que fosse possível. Após alguma peregrinação, errando de um lugar a outro, foram para o Brasil. Susy foi para um subúrbio do Rio do qual não me recordo o nome e Hadros foi para Niterói, pertos um do outro para que não se perdessem mesmo que ficassem sem se verem por muitos e muitos anos, para que não despertassem nenhuma suspeita de suas novas identidades. Dando prosseguimento ao plano de não voltar em hipótese alguma, decidiram adotar um plano B, por precaução. Cada um encontraria um terráqueo para ter um filho e depois alegar não poder deixar o filho para trás no caso de uma deportação. Lembrem-se, os filhos, eles já sabíam de antemão, seriam uma filha para Hadros e um filho para Suzy, porque esse é um princípio que vale para todo alienígena que chega no planeta Terra. Essa história será explicada mais adiante porque, por enquanto, temos muita história pra contar ainda.  Só não contavam com um pormenor do qual nunca tínham ouvido falar antes: os imigrantes de outros sistemas planetários têm sua memória apagada ao serem admitidos como residentes temporários na Terra após fazerem um backup da memória original. O processo, todos admitem, é muito primitivo, e a lembrança de algumas coisas permanecem como se fossem uma espécie de palimpsesto mental. Na nova memória instalada existe um timer que os avisa da programação de retorno à base, ao espaçoporto, à medida que o tempo de permanência autorizado se esgota. Essa é a explicação de haver tantos extra-terrestres por aí que não se dão conta de suas origens. Os incautos seres realizam o desbloqueio do sistema que lhes são instalados ao chegar no planeta em qualquer birosca por piratas desqualificados e o que costuma acarretar graves distorções mentais.

Antes de se separarem, Suzy ainda fez um último apelo na tentativa de permanecerem juntos nesta estada na Terra. O amor era um sentimento inapagável do sistema original, uma espécie de firmware da mente humanoide. “Venha meu amor, a gente pode se amar e se respeitar pelo resto de nossa vida. Saberei compreender nossas diferenças e serei sua escrava”. Hadros deu um sorriso sarcástico, até porque já nem lembrava mais quem ela era, como se estivesse meio grogue depois do apagamento da memória, o que também revelou tudo que se poderia de fato esperar dele. Percebendo que Hadros reparava a imagem tatuada com tinta azul logo acima de seus seios, ela obsequiosamente abriu mais sua blusa, controlando o olhar daquele homem indomável, mas Hadros foi taxativo. Não era hora de se construir uma vida que ela afirmava ser prometida. Era hora de se separarem.

- Um beijo, então, senhor, rápido. Mesmo sendo abandonada por você neste planeta desconhecido, ainda assim me sinto recompensada por ter acreditado nesse amor.

No horizonte, uma linda aurora irrompia no céu setentrional. Era um espetáculo arrebatador, se constituindo em um belo cartão de visita para receber os novos habitantes nesse novo lar. Um belo planeta e um coração arruinado. Nada parecido com o que Suzy esperava, um contraponto para a dor que sentia, para marcar profundamente o fim dos sonhos que alimentou por tanto tempo e que se prolongou durante a segunda parte da viagem. Aparentemente, pouca coisa tinha sido apagada de sua mente. Nesse planeta dos raios, o que está escrito nas estrelas não vale nada. Está explicado porque tanta gente quer vir para cá e depois não quer mais ir embora. Lançou um último olhar na direção do horizonte, que seus olhos teriam que se adaptar a partir de agora. A luz da tarde se esvaecia melancolicamente, dissolvendo-se como se lágrimas turvassem a visão desse novo mundo.

- “Bem não há o que fazer. Vou desligá-lo no céu”, pensou Suzy ao se afastar de Hadros para sempre”, ela pensava. “Vejamos agora se é verdade o que se diz desses planetas, de que basta ter um par de mamas para dominar seus tolos habitantes”.



(1) Nuvens de Kordylewski: poeira remanescente da formação Terra-Lua que se localiza nos pontos lagrangeanos L4 e L5.