domingo, 27 de janeiro de 2013

me & mrs. Kue

les concierges du CLIc

Conto 2 - O raio trator


Estávamos todos reunidos na casa de Neide  quando o fim do mundo aconteceu, pelo menos do mundo como conhecíamos até então. O noticiário da TV anunciava grandes catástrofes por toda parte no globo terrestre. Éramos testemunhas indiretas, hoje eu sei, porque pudemos perceber, ao olhar pela janela da sala do apartamento que alguma coisa de muito estranha estava ocorrendo em algum lugar não muito longe de onde estávamos, tamanha era a quantidade de estrelas cadentes que cortavam o céu vindo de todas as direções. Surpreendentemente, nada aconteceu em nossa vizinhança, pelo menos de imediato, pensávamos. Ocorreu-me que talvez devêssemos sair correndo pra rua antes que as consequências do desfirmamento celeste chegassem até nós. Pensei logo em tsunamis, incêndios de grandes proporções, que cedo ou mais tarde nos alcançariam.

Depois desse evento catastrófico dos fins dos dias, foi longo, muito longo o período de aprisionamento que vivi. Tudo aconteceu muito depressa naqueles momentos finais em contraponto com o que viria depois. Lembro-me, no entanto, de poucas coisas, que não se casam para formar uma ideia clara de como vim parar nesse estranho lugar onde vivo desde então. Além de não compreender exatamente tudo que aconteceu naquele dia, por não conseguir montar uma cadeia lógica para os acontecimentos, estimo que danos maiores também se somaram para que eu chegasse ao ponto que cheguei, talvez o efeito de um aprisionamento prolongado, como saber?

Lembro-me de alguns flashes, entre eles o de haver conhecido uma estranha criatura que me abordou como se já me conhecesse, me chamando de Arthur. Olhei para ela, e custei a entender o que estava acontecendo comigo. Senti um aquecimento pelo corpo e cheguei a desejar-lhe. Era estranha e interessante. Foi um pouco antes que eu percebesse a estranha luz que vinha do espaço e incidia sobre nós, aparentemente apenas sobre nós dois, banhando nossos corpos, envolvendo-nos em uma espécie de neblina, de nuvem-chuva. Não me lembro de mais nada depois. Talvez tenha sido um sonho. Será que realmente encontrei aquela mulher? Não tenho certeza se isto de fato ocorreu. Acho que sou habitado por personagens fictícios entre os quais me perco muitas vezes, ou talvez quase sempre, quando me sinto incapaz de saber quem sou nessa multitude de pensamentos, vozes e imagens que me povoam.

Essa aparente perda de identidade experimentada por Etevaldo estava levando-o às raias do desespero, deprimindo-o, entristecendo-o de uma forma que só estava servindo para agravar seu estado de melancolia. A experiência estava além da sua capacidade de assimilação, ele não conseguia a energia gratuita que pairava em torno de si, o que era evidentemente um sinal de inteligência curta. O feixe oco de laser que o abduziu era um raio trator oriundo da nave Startrek que suspendeu os dois pombinhos do chão, conduzindo-os por um duto para uma nave espacial em formato de charuto que pairava a uns 100 metros do local onde estavam.

O mundo mudou depois disso, não sabía até então que estava presenciando uma profunda revolução no planeta em que vivía. Não devemos nunca subestimar as reviravoltas que o destino reserva para nossa vida. Quando alimentamos a ilusão de termos o controle dela, um grande vazio costuma se estender a nossa frente, principalmente se não sabemos esperar o que o acaso pode nos oferecer.  Por isso, caro leitor, você não pode imaginar o prazer que sinto em certificar-me que a natureza se repete indefinidamente naquilo que há de mais trivial em nossa vida.  Mesmo agora, quando esperava que tudo fosse diferente, que pensava que emergiria de súbito em outro mundo, se nada não fosse, uma outra era, numa outra natureza cujas leis fossem diferentes daquelas da nossa, deparo-me com a mesma situação que deixara no outro mundo. Estarei preso a algum padrão do qual não consigo me libertar?

Ah, a diversidade dos mundos possíveis, como ajudava nessa hora! Sabemos e muito apreciamos o fato de que as coisas exteriores do mundo visível provêm de várias dimensões diferentes e complementares ao mesmo tempo. Convivemos numa multiplicidade de mundos exclusivos, não apenas forjados pelas lentes da ilusão, mas por leis naturais mais férreas que a realidade do cotidiano que experimentamos. Etevaldo pensava assim, julgava compreender um pouco mais do que a maioria de seus iguais, e gozava da convicção íntima de que viver como um cara desligado era o segredo de jamais deixar o melhor da vida escapar. Esse era seu maior ato de confiança: transcender-se. Subconscientemente agia como se acreditasse que pessoas aparentemente separadas no tempo e espaço, mas que vibram em uma frequência comum, acabam se reencontrando repetidamente pelas voltas que o mundo dá.