Era
uma vez ... um pequeno planeta de um sistema estelar periférico de uma
galáxia ordinária que se tornou palco de uma sangrenta batalha entre
senhores de impérios que se digladiam por todo o cosmo. Seu nome: Marte,
mas não é diretamente a ele que esta história se refere, e sim ao
planeta ao lado, que por um equívoco dos seus habitantes primitivos foi
chamado de Terra. A vida na superfície de Marte ficou completamente
comprometida em consequência de batalhas que ali ocorreram, a guerra se
alastrando até o planeta vizinho a um nível de sofisticação tão grande
que deixa muitas vezes indecisos seus combatentes quanto ao lado pelo
qual lutam. Não há ideologias de espécie alguma, o que importa é apenas o
poder. Tanto faz de que lado se está, são todos indiferentes. O habitat
terrestre permissivo e promíscuo construiu civilizações que permitem a
convivência até certo ponto pacífica entre inimigos mortais,
transferindo as manobras de guerra para os bastidores políticos, sem o
conhecimento do grande público que apenas pressente a ameaça pela
desconfiança que lhe inspiram seus líderes. A guerra tornou-se
dissimulada e camuflada, um vale tudo maquiado com projetos de
sustentabilidade de fachada em que valorizam e marqueteiam projetos em conformidade com o meio ambiente, como se importassem em não
destruir a natureza como ocorreu com Marte, onde a vida segue seu
curso normal atualmente apenas nos canais subterrâneos artificiais. A
hecatombe marciana se tornou uma lição aprendida para as autoridades
terráqueas, de que a natureza é uma totalidade orgânica e harmônica e
que se deve procurar preservá-la sempre que possível. Poucos são os que
têm acesso aos verdadeiros desígnios que norteiam o rumo dos
acontecimentos e você, leitor, está ingressando em um terreno perigoso
ao tomar conhecimento dessa história.
Os
senhores que controlam o planeta Terra, atualmente, tem ideologia de
mínima interferência na evolução natural e tecnológica de seus
habitantes e contam com colaboradores de diversos matizes políticos que
se enfrentam entre si, com aparente liberdade, visando cada um implantar
seu próprio sistema partidário. São incentivados a acreditar que o
mundo foi criado para eles, ou que sempre existiu e ninguém tem
participação nisso, aproveitando o fato de que muitos nem querem saber
de nada. São muitas as moradas e em muitas delas, habitadas por seres
mais inteligentes que os terráqueos, as questões básicas das
civilizações alienígenas já foram resolvidas. Em tantas outras, o estado
de selvageria não foi superado, e os seres se envolveram em questões
intermináveis que os tornaram mais hostis que as mais hostis criaturas
observadas no planeta periférico de onde relato esta história.
O
planeta Terra, conhecido cosmicamente como Gaia, apresenta uma complexa
variedade de seres vivos, que ao longo de milhões de anos lutam por sua
sobrevivência, cada qual pela preservação da sua espécie. À exceção de
uma pequena parcela desses seres, denominados humanos, a maioria deles é
pouco evoluida. Quanto a isso é preciso esclarecer que os humanos se
confundem com outros seres que lhe são muito parecidos e com os quais
convivem nas diversas civilizações terrestres, conjugando atos e
pensamentos que se interpenetram no cotidiano, mas que servem a
propósitos diferenciados. Chamemo-los, por enquanto, de humanoides. A
distinção entre humanos e humanoides é complexa, depende da capacidade
de se perceber o núcleo de vida invisível a que se encontra ligada a
mente e o coração de cada um. Enquanto os humanos servem com profunda
convicção a seus semelhantes, com espírito de boa-vontade, sacrifício e
renúncia pessoal, os humanoides obedecem inconscientemente a impulsos
mecânicos, de forma irresponsável, visando prioritariamente sua
satisfação pessoal imediata e a dos que podem ajudá-los em sua jornada
egocêntrica no longo prazo. Abordaremos essa questão com mais detalhes
oportunamente, detendo-nos, por enquanto, na caracterização genérica dos
habitantes do planeta.
Por
constituír a esmagadora maioria dos terráqueos, e pelo fato de que cada
planeta se caracteriza cosmicamente segundo a natureza e extensão da
onda de sentimento de seus íncolas, a Terra não está bem na fita perante
outros sistemas planetários. Os terráqueos sentem uma estranha
satisfação na desigualdade, mesmo quando alardeiam o contrário, sendo
que dez por cento da população possuía, há apenas algumas décadas,
noventa por cento dos recursos econômicos existentes. O atraso dos
terráqueos se justifica por uma característica marcante de sua natureza,
a de pensarem uma coisa, dizerem uma segunda e fazerem uma terceira,
fruto dos conflitos mentais causados pela cosmodiversidade de suas
origens. São muito pouco eficazes no que fazem, com contradições que
atraem missionários religiosos e ativistas políticos de diversos
planetas. Os alienígenas consideram o local apropriado para o
desenvolvimento de uma compreensão tolerante do conhecido enigma cósmico
da desigualdade e da sorte. Embora haja bastante diversidade de seres
entre um planeta e outro, cada planeta, à exceção da Terra, é
intolerante em relação à imigração de seres de outros planetas. Porém,
na Terra, alienígenas aventureiros e bem orientados conseguem ser bem
sucedidos e galgam postos executivos de significativa importância,
podendo-se contabilizar entre suas realizações, por exemplo, a redução
da desigualdade social nas últimas décadas, de maneira que cerca de 60%
da população mundial pode ser considerada de classe média, embora a
renda per capita média que caracteriza essa classe seja hoje a quinta
parte do que era no início do século XXI. Esse
feito tem impedido que alienígenas disfarçados de bons governantes
possam ser desmascarados, permitindo que prossigam em seus projetos de
dominação do planeta, a meta final sendo a conquista completa da Terra
para um dos impérios que disputam seu controle total.
A
diversidade existente, como foi dito, tem uma explicação. Gaia é
refúgio de seres oriundos de diversas partes da galáxia, de regiões
extragaláticas e de casos identificados como pertencentes a universos
paralelos. Os alienígenas vieram dos quatro cantos do universo, embora a
maioria deles desconheça os motivos que os trouxeram para cá. Outros
sequer sabem que não são daqui. Com tanta variedade, não é de se
estranhar a diferença entre as pessoas. Diferenças que se fazem notar na
constituição física mesmo, porque quando se considera as condições
existentes em estrelas distantes, percebe-se que as estruturas
moleculares dos seres que habitam essas regiões são, muitas vezes,
diferentes das existentes aqui na Terra. No processo de adaptação às
condições terrestres dos imigrantes, há uma completa reprogramação de
sua estrutura biológica e visual nas chamadas clearing house do
espaço-porto que os recebem, de forma que eles devam aparentar pertencer
a uma das etnias nativas. A atmosfera do planeta é úmida e oxigenada,
podendo ser corrosiva e letal para muitos alienígenas.
O simples fato de estar abordando essas questões é suficiente para que interferências alienígenas tentem influenciar as descrições que faço e, se não tomar cuidado, as contradições de meu próprio código de memória programável, apagável, somente de leitura, não me permitirão continuar contando esta história, portanto, desculpem-me os leitores, ordens superiores me limitam a declarar que os espectros de estrelas distantes mostram que estas apresentam diferentes concentrações de elementos químicos daquelas encontradas no Sol dos terráqueos. Obrigam-me a dizer ainda que o campo de radiação gerado por estas estrelas não necessariamente é o mesmo que o recebido pela Terra. Prosseguindo ainda com as orientações que resulta da falha na solução de dependências internas do meu próprio sistema matriz, finalizo esse interregno lógico afirmando que por maiores ou menores que sejam as semelhanças entre as condições na Terra, à época de surgimento da vida, e as de dado planeta em momento análogo, a evolução das espécies não deve ocorrer de forma idêntica. Stop. Exit.
O simples fato de estar abordando essas questões é suficiente para que interferências alienígenas tentem influenciar as descrições que faço e, se não tomar cuidado, as contradições de meu próprio código de memória programável, apagável, somente de leitura, não me permitirão continuar contando esta história, portanto, desculpem-me os leitores, ordens superiores me limitam a declarar que os espectros de estrelas distantes mostram que estas apresentam diferentes concentrações de elementos químicos daquelas encontradas no Sol dos terráqueos. Obrigam-me a dizer ainda que o campo de radiação gerado por estas estrelas não necessariamente é o mesmo que o recebido pela Terra. Prosseguindo ainda com as orientações que resulta da falha na solução de dependências internas do meu próprio sistema matriz, finalizo esse interregno lógico afirmando que por maiores ou menores que sejam as semelhanças entre as condições na Terra, à época de surgimento da vida, e as de dado planeta em momento análogo, a evolução das espécies não deve ocorrer de forma idêntica. Stop. Exit.
Desculpem-me os leitores e aproveito o incidente que acaba de ocorrer
ao abordar a questão das diversas procedências dos terráqueos para
informá-los que os registros existentes em nossa memória foram gerados
em outros planetas e isso explica as interferências que impediram, no
meu caso particular, uma clara explanação desse assunto. Não temos
autonomia suficiente para dizer o que sabemos porque somos monitorados,
controlados e interferidos permanentemente a partir dos planetas de onde
viemos. Em suma, o que tentei explicar é que corpo e alma dos seres são
diferentes, quando oriundos de outros sistemas planetários comparados
com os nativos da Terra, e, por conseguinte, as referências que cada um
usa na sua vida diária não podem ser as mesmas, e nem serem convertidas
satisfatoriamente de uma percepção da realidade à outra. A comunicação
entre os seres torna-se, assim, muito difícil, com reduzida capacidade
de entendimento entre eles. Em relação ao temperamento dos seres, se já
existem questões sobre a possibilidade de que ele seja afetado pelo
clima terrestre característico da região onde nasceu e vive, imaginem o
quanto o fato de serem nativos de planetas diferentes deve afetar os
diferentes tipos existentes. Não há hipótese de reconhecimento entre
dois mundos distintos, cada pessoa traz um mundo particular dentro de
si, fala língua diferente, mesmo quando não dito de maneira literal, e
uma raramente se comunica com a outra. O instrumental de comunicação
formal no planeta, as palavras, está longe do ideal de objetividade
necessária para uma clara e inambígua compreensão entre as pessoas, o
que faz com que uma simples palavra tenha tantos significados quantos
sejam seus interlocutores. São patéticos os esforços de criação de uma
linguagem objetiva que permita uma clara comunicação entre os seres. A
Terra é uma Babel.
A
poucos anos-luzes daqui, algumas civilizações já chegaram a estágios
bem mais elevados. Assim é que em algumas dessas admiráveis civilizações
os seres são gerados aos pares de forma programada em laboratórios,
macho e fêmea são feitos para terem suas vidas potencializadas ao se
complementarem ao longo de suas existências. Em outras, embora formas
mais primitivas de procriação persistam, é possível encontrar o par
ideal de cada indivíduo graças às técnicas
de mapeamento do genoma das espécies. Porque também na natureza os
seres são gerados aos pares, embora seja uma tarefa inglória, quase
sempre condenada ao fracasso, ao se tentar encontrar em que cafundó dos
judas teria se metido nossa cara metade. Nas civilizações onde isso é
factível, a eficácia produtiva da sociedade foi aumentada em dezenas de
vezes por
razões que são muito fáceis de se imaginar quando se vive de forma
orientada e planejada. A humanidade sempre ansiou por uma organização
assim, que pudesse aproveitar o máximo do potencial humano, recorrendo a
recursos os mais variados ao longo da história, seja invocando deuses,
adorando faraós, criando mitos, poderosas instituições ou outras
organizações ou regimes políticos de triste memória.
Em
certa civilização de um planeta não muito longe daqui foi desenvolvida
uma técnica cujo emprego se tornou proibido em muitos lugares, porque
interfere nos padrões locais de organização das uniões entre os seres. A
técnica que permite encontrar um companheiro ou companheira ideal,
independentemente dos processos reprodutores, consiste no
estabelecimento de conexões entre as codificações genéticas que
caracterizam os seres, uma espécie de mapeamento genético, de tabela
sinástrica, e essa conexão se faz independente da distância,
sintonizando perfeitamente emissor e receptor, onde quer que estejam os
consortes, e que permite descobrir com exatidão quem é nossa cara
metade, presumivelmente. A técnica tem ferrenhos adversários, sobretudo
nos planetas mais moralistas ou ortodoxamente cientificistas, porque as
soluções encontradas muitas vezes ferem os padrões morais dessas
sociedades, ainda que dividam a comunidade científica, unindo os seres
independentemente do gênero, o que muitos julgam ser uma anomalia à
primeira vista.
Esses,
entre outros, assuntos escatológicos foram abordados na reunião na casa
de Deise, em que algumas pessoas foram convidadas para conversar sobre
as mais recentes notícias de uma tragédia iminente para todos os
terráqueos: a rota de colisão de um asteróide com o planeta, anunciada
para dentro de um mês. Aos meados da década de 30 do século XXI, a morte
por doenças já não era mais um problema no planeta, já tinha sido
vencida pela engenharia genética. A causa mortis dos terráqueos decorria
exclusivamente de desastres naturais, homicídios e de guerras pontuais.
O asteroide tinha trazido ao centro das discussões valores ancestrais
que andavam marginalizados desde a ultima destruição em massa ocorrida
no planeta, havia setenta e um mil anos, no lago de Toba, na Indonésia: a
solidariedade e a cooperação entre os habitantes. A sobrevivência da
espécie humana dependia uma vez mais da cooperação ao invés do conflito,
que tinha sido o traço principal da vida na Terra nos últimos milênios.
Etevaldo,
um cara profundo de olhos rasos, moreno cor de jambo, do tipo
avermelhado, longos cabelos ruivos presos em um rabo de cavalo, magro e
atlético, de 1,95 m de altura, atraía a atenção dos demais presentes na
sala quando interrompeu subitamente sua fala com algo que o incomodava.
Percebeu que os presentes trocavam olhares enquanto falava, como se
compartilhassem um segredo comum. No silêncio que se seguiu, ouviu um
dos presentes exclamar:
“Bravo,
Etê! A mensagem que acaba de nos passar é muito significativa. De nada
nos valeu vencer a morte com nossa avançada tecnologia se agora seremos
todos destruídos pelo cometa”, disse Luana, com seu ar costumeiro de
elegância e generosidade.
“Assim
como todas as células do nosso corpo conversam entre si, eu tenho a
esperança que meu subconsciente restabeleça a comunicação com meu
planeta natal para que me salve desta catástrofe. Espero que ele mande
um email para nossa embaixada que orbita o planeta e que um plano de
retirada esteja sendo finalizado” , suspirou Celeste.
“Fala sério!”
“É sério.”
“Você também acredita que o planeta Hercolubus passará perto da Terra em breve?”
“Do que é que você está falando? Não estou sabendo de nada. Que planeta é esse?”
“Dizem
que ele já passou e nada aconteceu.” Dessa vez foi o Dr. Marciano que
interveio: “É um planeta que volta às vizinhanças terrestre a cada 13000
anos e causa destruição generalizada no planeta. É cerca de 1600 vezes
maior que a Terra e, embora não colida com o planeta, passa tão perto
que causa um choque magnético, acarretando tsunamis e tufões. Ele passou
entre as órbitas de Júpiter e Marte.”
“Quem sabe, então, não ocorrerá o mesmo com este asteroide?.”
“Não sei o que estou fazendo aqui. Odeio essas conversas escatológicas.”
“Geralmente as pessoas fazem esse tipo de previsões quando estão prestes a morrer ou sua vida está tomada de um completo vazio.”
E
continuaram falando dos dias finais, sobre choques, radiações,
inversões do polo magnético, aumento espetacular do tamanho do planeta
Marte no céu, rivalizando em tamanho com a Lua, prolongamento do dia com
a imobilização do sol, e outros prenúncios fatais estimulados pela
calamidade que todos esperavam e temiam, desde a origem dos séculos, nas
suas diversas modalidades, mas que agora pairava visível no céu do
frágil planeta azul. Ou seria essa conglomeração apenas mais um episódio
da ancestral obsessão que os terráqueos têm pela ideia de um
aniquilamento da espécie?
Sentado
em uma cadeira delgada, de metal, com o protetor de borracha de um dos
pés faltando, bem em frente do sofá de três lugares e tendo o outro sofá
a sua esquerda, Etevaldo observava o burburinho generalizado causado
pelas conversas paralelas. Um relógio na parede marcava 16:50 h e tinha
um pássaro desenhado na sua vidrilha que parecia ser o autor da cantoria
que o relógio emitia a cada hora cheia. Um pouco mais ao fundo da sala,
à sua direita, havia uma mesa de seis lugares posta com o lanche que
Deise tinha preparado para os convidados, colocada do lado oposto da
porta de entrada. Por trás da mesa um móvel estante com diversas
coleções literárias. Etevaldo reconheceu que algumas delas eram de
coleções que saem de vez em quando nas bancas de jornais, a maioria de
capa dura. Na prateleira superior esquerda havia uma coleção bem antiga,
de marroquim grená gravado a ouro. A cadeira em que Etevaldo se sentava
estava afastada da parede por conta de um aparador que se interpunha.
Duas outras cadeiras com assento bastante duro ficavam de cada lado seu
e, ao centro, uma mesinha resplandecia com belas flores amarelas. Todos
ali se conheciam das reuniões mensais do clube de leitura que
participavam em Icaraí, à exceção de Cássio Péia. Os convidados de Deise se espalhavam na pequena
sala, sentados em dois sofás, de dois e três lugares, o menor deles com
uma descoloração difusa a partir do centro para as laterais.
Disse
Etevaldo: para ilustrar o que você falou, Celeste, vou contar a
história que se passou com a amiga de um amigo, a quem lhe era muito
querida, e foi com grande pesar que ele me narrou os acontecimentos. Ao
me contar a história, ele se abalou profundamente. Não sei se posso me
referir tão somente a ser, o ocorrido, uma história, se não seria melhor
me referir a ela no plural, por ter sido justamente a pluralidade de
histórias como sendo a causa do problema. Porque somos a totalidade das
histórias que imaginamos, não apenas as que realizamos, mas todas que
são possíveis. O mundo não é tão objetivo assim como querem nos fazer
acreditar os realistas.
“O
que é que você está falando, Etevaldo? Você sabe que não pode revelar
essas coisas publicamente desse jeito”, retorquiu Deise percebendo que
Etevaldo estava invadindo um terreno perigoso com sua fala.
Um som de piano entrou pela janela lateral, que dava para uma longa entrada que margeava todo o edifício, possivelmente
de algum apartamento mais ao fundo. Etevaldo reconheceu a canção de
Bella Bartok. Olhou para o lado de fora, por trás e acima do edifício
vizinho um bloco de nuvens negras assomava. Pensou em ir embora antes
que o céu desabasse. Custou um pouco a responder e quando o fêz, a voz
saiu estranha e quase não se reconheceu:
“Creio que esse assunto não é novidade para ninguém desse grupo, Deise.”
“Você
é um dos nossos, Etevaldo? Ou não sabe do que está falando?”, não se
conteve Deise manifestando uma certa impaciência com o rumo que a
conversa tomava.
“Seja
lá o que você queira dizer com isso, Deise, não faço parte de nenhuma
organização secreta que devo dar satisfação do que falo ou deixo de
falar. Meu compromisso é com minha consciência e com a verdade dos fatos.”
“Temos que reconhecer que se trata de uma reação inesperada”, ponderou Maria do Céu, “estou gostando da polêmica.”
“Prezado
amigo, é absolutamente imperioso que interrompa o que está dizendo.
Quero ter uma conversa reservada com você e ordeno, por ora, que adie o
assunto que está abordando”, apressou-se a intervir Deise, antes que a
discussão evoluísse com desdobramentos imprevisíveis. “Posso ter
cometido uma imprudência ao convidá-lo para essa reunião e, de fato,
antes de anunciarmos o propósito desta agremiação, precisamos ter
cautela, e conhecer melhor os senhores presentes”, fez um gesto largo
envolvendo toda a plateia, o dorso da mão conduzindo o movimento. “Não
é por acaso que vocês estão aqui esta tarde, mas também não será por
isso que verdades incômodas devam ser reveladas tão precipitadamente.”
Etevaldo
ainda esboçou uma argumentação mas Deise lhe fez um sinal quase
imperceptível para acompanhá-la, se não fosse a observação atenta de
Saturnino. Deise era uma mulher centenária que sabia se fazer respeitar e
todos a temiam por detrás da admiração geral declarada.
Entraram
por um corredor ladeado por uma estante do rés-do-chão ao teto, repleta
de livros com disposição irregular em relação à suas alturas. Dobrando à
direita dava na cozinha da casa e logo em seguida para uma área interna
com plantas penduradas da parede da casa e do muro que delimitava sua
residência. Sobre a pia da cozinha estavam alguns legumes que a ajudante
de Deise tinha trazido da feira, feita pela manhã: beringelas,
pimentões verdes e vermelhos, abobrinhas, ervilhas e algumas cabeças de
alho.
“Dona Hermione”, chamou a ajudante.
Deise
voltou-se bruscamente para ela e a repreendeu em voz baixa por
chamar-lhe dessa forma, pronunciando palavras desconhecidas. Etevaldo
estranhou o fato mas desviou logo sua atenção enquanto descia uma escada
de três lances, assustando-se por um momento ao ver um coelho passar
rapidamente a sua frente. Respirou forte olhando ao redor, um cheiro bom
de flores preenchia o ambiente. Mais ao fundo havia uma gaiola com um
pássaro que cantava intensamente, sendo observado de cima do muro por um
gato branco e preto. A um canto, uma hera subia pelo buzinote e
tentava fugir pelo telhado. Deise passou o braço por entre o braço e o
corpo de Etevaldo e lhe disse que tinha algo para lhe mostrar. Pediu-lhe
para esperar um pouco e retornou à entrada que tinham acabado de
atravessar, fechando a porta da cozinha atrás de si. Era possível ouvir
algumas vozes vindo da sala onde estavam os convidados da reunião de
temas apocalípticos, acompanhadas de algumas risadas. Com um breve
suspiro ele se sentou em uma cadeira de vime e passou a observar o
cenário com curiosidade.
Enquanto isso, na sala, as pessoas se perguntavam sobre o que poderia estar acontecendo.
“Tem sempre uma nuvenzinha negra pairando sobre a cabeça desse rapaz.”
“Não fale assim dele, é um belo espécimen!”
Demorou
uns dez minutos para Deise aparecer novamente, atravessando o pequeno
jardim com uma brochura com mais de 100 páginas, aparentemente.
“Quero
que você leia isso antes que revele o que me pareceu que você queria
falar lá na sala. Tenho guardado isto comigo por 76 anos. A história que
está aí registrada vai te ajudar a elucidar o que aconteceu com sua
amiga. Depois de ler, então, se julgar oportuno, você poderá revelar a
história que se passou com ela.”
Profundamente
intrigado com o conteúdo que haveria naquele manuscrito, Etevaldo
seguiu Deise enquanto ela atravessava de volta o jardim, reentrando pela
porta da cozinha após subir o lance de escada. Ela cedeu passagem para
ele e fechou a porta atrás de si. Reaproximaram da porta da sala da
frente e reentraram de braços dados enquanto todos os olhavam com grande curiosidade.
“Qual
o segredinho?”, perguntou Adélia, “afinal, tem alguma relação com a
ameaça que paira sobre nossas cabeças, caro Sr. das estrelas?”
“Etevaldo
é sempre surpreendente em suas ideias”, antecipou Deise antes que
Etevaldo pudesse falar alguma coisa. “Pensei que eu era uma grande
inventadeira de modas, mas descobri em Etevaldo alguém que veio me
suplantar completamente. Confesso que perco para ele em matéria de
criatividade”, acrescentou. “Bem, lamento informar que teremos que
encerrar nossa reunião de forma inesperada”, arrematou.
Etevaldo
sentiu algo estranho ao olhar de novo o cuco na parede. Percebeu que
cada relógio da casa mostrava uma hora diferente e, por um momento,
perdeu a noção do tempo. A nova perturbação que sentiu o levou à
consciência das coisas, compreendeu subitamente o que estava
acontecendo. O braço de Deise em torno do seu parecia prendê-lo mais do
que ele achava normal. Tinha sido muita ingenuidade achar que estava
diante de uma plateia normal de pessoas aquela tarde na casa de Deise.
Já haviam lhe advertido sobre a presença cada vez maior de
extraterrestres e clones entre a população local, inclusive de ETs
estrangeiros, e, embora ele soubesse que a Terra sempre fora visitada
por esses seres alienígenas, o que ele ainda não sabia era que a
presença deles era mais alarmante do que imaginava, e este era um fato
que não poderia mais ser negligenciado. Estava claro agora que aquele
encontro não se tratava apenas de uma reunião informativa e que alguns
dos presentes usavam nomes fictícios para não revelarem o verdadeiro
motivo de sua participação.
Sentados
no sofá menor, Celeste, Saturnino e alguém desconhecido para Etevaldo
conversavam em voz baixa, inclinando-se entre si como se não quisessem
ser ouvidos por mais ninguém, e suas vozes eram vagas murmurantes que
pareciam originar-se de dentro da cabeça do cientista.
“Pelo
visto nosso palestrante violou algum código secreto de nossa anfitriã,”
cochichou Galatea. “Deise não esperava esse comportamento de Etevaldo.
Vocês repararam a tensão entre eles? Parece que alguma ordem
pré-estabelecida foi subvertida.”
“Achei interessante e insólita a história que ele contou!”, disse Celeste, “de que planeta será que ele vem?”
“Aposto que ele é do mesmo planeta do Darth Maul?”
“Eu não sei, não consegui identificar muito bem. Já vi outros dele por aí.”
“Esses cientistas não dizem coisa com coisa. Devemos ponderar bastante antes de aceitar as explicações que ele deu.”
“Você
fala sério? Gostaria de saber o que ele teria revelado se não tivesse
sido interrompido por nossa anfitriã. Esperemos a próxima reunião mensal
para sabermos o que ele tem pra falar depois de ler o documento que tem em mãos” contrapôs Saturnino e, num instante, um burburinho ainda maior tomou conta da sala.
“Não
vou suportar até lá. Preciso me informar sobre o conteúdo daquele
manuscrito e indagar a respeito da razão pela qual Deise lho deu para
ler.”
“Controle-se, agora não é hora de curiosidade.”
“Por Deus que não perco a próxima reunião, de maneira alguma.”
“Que sorte que ela se dará antes do choque dos planetas!”
“Isso pouco me importa. No que poderá mudar nosso destino?”
E
assim falavam todos entre si quando Etevaldo ajeitou o rabo de cavalo
num maneirismo característico e foi-se embora, sem se despedir de
ninguém. Na porta, antes de sair, ainda parou para deixar seu jamegão no
livro de presenças da reunião extraordinária do clube da lua. Assinou
no espaço em branco que tinham deixado reservado para ele.
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