sábado, 22 de dezembro de 2012

Cap VI - Mais Brilhante que o Sol




A música de Colbie Caillat entrava pela janela, tocada em alto volume na casa da vizinha, um lugar que parecia estar em permanente festa.


Oh, this is how it starts, lighting strikes the heart
It goes off like a gun, brighter than the sun
Oh, we could be the stars, falling from the sky
Shining how we want, brighter than the sun  

Mais brilhante do que o sol, realmente, era uma linda chuva de estrelas como jamais vista anteriormente, como se fosse um espetáculo pirotécnico sem som da virada de ano na praia de Copacabana. O céu parecia estar desabando, como seria se o mundo estivesse acabando, mas a vizinha não viu nada. Eu também teria perdido de vista o fenômeno se não tivesse ido até à varanda fumar um cigarro. Quase perdi o fim do mundo, daquele mundo que não era o meu, pelo menos, porque este estava apenas começando.

Muitas coisas aconteceram depois que me separei de Suzy. Entre elas, decidi mudar de nome para me adaptar às novas condições de vida, adotando um nome comum entre os cidadãos do local onde decidi viver: Hélio. Vim morar em uma cidade provinciana próximo a uma grande cidade da América do Sul, onde se esconde grande parte dos salafrários do universo, que fogem de alguém ou de algum lugar. De forma a evitar a proximidade física com Suzy e novos aborrecimentos, utilizei um recurso engenhoso que trouxe de meu planeta natal, que era o de voltar no tempo de forma a garantir a separação conveniente em relação ao problema Suzy. Era início da década de sessenta do século XX do calendário terrestre predominante no lado ocidental do planeta.

O propósito de Hadros, agora Hélio, era construir um novo futuro, diferente daquele que pensava  e arquitetava no seu planeta de origem. Afinal, agora se encontrava em condições completamente distintas do que vivera até então. E diga-se de passagem, era necessário construir um passado também. Hélio não tinha um passado no planeta Terra e, portanto, era necessário inventá-lo. Vivendo assim de uma forma em que o passado não está propriamente definido, Hélio decidiu criá-lo à medida que fosse vivendo, numa espécie de experimento de escolha retardada, adiando suas decisões diárias até o último momento de suas ações, após avaliar cuidadosamente as consequencias, ou seria melhor dizer, as causas que as originaram. Essa quase não decisão já se mostrou muito eficaz anteriormente, técnica esta que ele dominava com maestria, prevenindo-o de muitos problemas inconvenientes. Tal técnica de autogestão pessoal proporciona a seu portador a possibilidade não apenas construir seu passado como também de alterá-lo a qualquer momento.

Hélio chegou em Niterói havia pouco tempo e ainda não conhecia muita coisa, embora tenha se familiarizado rapidamente com o ambiente da cidade e costumava frequentar a praia de Icaraí, onde passeava pelas areias despreocupadamente. Foi em uma dessas caminhadas que encontrou Saturnino, de quem tornou-se amigo e se frequentaram a partir de então. Foi amizade à primeira vista. Saturnino prometeu ajudá-lo a construir o passado desejado, conhecia as pessoas certas para isso, lembrou-se logo de Arturo, outro amigo esquisitão que tinha conhecido também na praia de Icaraí. Pois era isso que Hélio queria, construir seu passado em função do futuro almejado. Passado e futuro, um espectro duplo de possibilidades idealmente correlacionados. Ele e Saturnino viravam noites sentados nos bancos da praia de Icaraí lucubrando sobre as possibilidades da história de vida a ser criada.

A Helio lhe encantavam as mulheres locais. Começou a azarar todas que encontrava pela frente. “O bom é assim”, dizia, “a corte sem necessidade, para que seja natural e simples quando for de fato necessário e desejável.” Envolveu-se tanto com todas que as oportunidades ensejavam que acabou se entusiasmando com uma delas, que só lhe deu o que queria depois de ser levada ao altar. Aos amigos que lhe advertiam sobre a inconveniência de tal matrimônio costumava repetir que nunca dispensava uma mulher bonita, “seja ela de que espécie for”, repetia sempre, como se significasse algo mais do que compreendemos em um primeiro momento.

Seu casamento durou o tempo que uma cigarra canta.

“Não tenho esperança de encontrar uma mulher para amar, uma apenas, porque o que eu amo nas mulheres está dividido entre muitas. A mulher que me satisfaria se fragmentou em incontáveis pedaços e eu agora busco restaurar os cacos espalhados em diversas delas”, ouvimos-lhe dizer.  

“Hélio, sua vida é insustentável. Como pode viver dessa maneira? Você acabará fazendo alguém sofrer dramaticamente”, ousou dizer Arturo, o amigo esquisitão, sacudindo a cabeça ao ouvir tal disparate do amigo, como se apenas confirmasse o que ele já sabia desde o início. Ele era da opinião de que os casamentos são selados no céu e que, uma vez que duas pessoas estivessem predestinadas para se pertencerem, nada poderia separá-las na Terra.

“Tudo que fizermos nesta dimensão dos acontecimentos efêmeros não pode afetar o mundo das coisas que permanecem, daí a necessidade de se colocar à prova as candidatas que encontramos nessa vida, para saber quem de fato deve nos acompanhar até o fim de nossos dias”, arriscou Saturnino, em dúvida sobre o que realmente significava o que acabara de dizer, mas com um forte pressentimento que correspondia ao pensamento do amigo alienígena.

“A ética é como o amor”, Arturo, “deve-se viver o presente, as consequências não importam. Quando se pensa no passado, é porque já se perdeu a paixão. O que você disse pode ser verdade, enquanto opção de vida, espero contudo que a própria vida resolva o problema para mim, sem que eu precise fazer nada”.

Uma ética centrada na transcendência. A traição amorosa não é aceita socialmente, é uma culpa absoluta e imperdoável; certamente não pode, mas deve ser realizada. Hélio era uma espécie de herói trágico, um autêntico revolucionário que afronta o mal e aceita suas consequências. Só a traição realizada por quem sabe firmemente e fora de qualquer dúvida que ela não pode ser aceita sob nenhuma circunstância seria de natureza moral.

Assim, o casamento de Hélio se desfez em um desses ditos testes planejados para caracterização de quem é o ser que deve realmente viver a nosso lado. Constatou-se que a esposa se tratava de uma falsa terráquea, um ser clone que tinha substituído a mulher verdadeira quando ela ainda era uma adolescente. A verdadeira Marilza, era esse o nome da mulher de Hélio, estaria agora em algum subterrâneo do nosso planeta, onde grassam bases militares, como se diz, servindo-se de cobaia de experimentos extraterrestres.  

Depois de Marilza, Hélio conheceu uma bela jovem niteroiense de nome Rosa, com quem viveu um tórrido romance de conseqüências duradouras. A certa altura do relacionamento, devido a diversos obstáculos que surgiram na vida dos enamorados, o casal decidiu fugir mundo afora, e Rosa avisou aos pais que iria de férias para São Paulo. O verdadeiro motivo, um segredo, era viver em plenitude a força de seu amor, por mais bizarro que possa ter sido a escolha de São Paulo para tal cenário.

Rosa viajou para a capital paulista na noite de 12 de Agosto de 1964, em um trem noturno, que lá chegou às 8h15min do dia seguinte. Infelizmente, o amor de Rosa não resistiu aos testes que Hélio a sujeitou e o romance terminou indesejadamente ao cabo de um mês, com Rosa voltando decepcionada para Niterói, curiosamente tornando verdadeira a mentira que alegara a seus pais ao partir para São Paulo. No ônibus em que regressava para Niterói na noite de 13 de Setembro de 1964, que saiu da capital paulista às 21:00 horas, Rosa relatou sua malfadada história a uma jovem alma elegante sentada na poltrona a seu lado que também voltava de São Paulo para Niterói e que logo lhe despertou a mais sincera simpatia, jovem esta que viria a narrar suas peripécias algumas décadas depois em uma obra literária a que deu o título de “Cabine Individual”. A semelhança entre os nomes das duas jovens nos fazem pensar em como são significativas as coincidências que a vida nos proporciona. Anos mais tarde Hélio encontraria a jovem alma elegante e usando toda perversidade de sua alma desqualificou a narrativa de Rosa, insinuando que a mesma teria inventado toda história, realizando uma espécie de versão metafísica do que outros já teriam feito materialmente, a saber, a multiplicação dos dias: os trinta dias da história de Rosa não teriam passado de um único dia, todo o resto sendo fruto da fantasiosa imaginação da jovem.

Conheci Hélio pessoalmente muitos anos depois, em Campos de Jordão. Ele veio de São Paulo para esta cidade havia cerca de 20 anos. Abriu um restaurante gourmet e recebia os clientes de forma muito gentil (não é pra menos, foi o restaurante mais caro que já fui na minha vida!). Disposto a tirar a limpo as coincidências que detectei lendo a revista "Encantos e Sabores" da região, pedi um vinho e atraímos, eu e Karina, o proprietário para uma conversa investigativa. Ele acabou contando muitas histórias, entre as quais pude identificar a contada em Cabine Individual. Ele me contou a versão dele da história e achei tão horrível que é melhor contar bem rápido para você, estranho leitor que me acompanha até aqui:

Sobre seu primeiro divórcio ele disse que se tratou de uma injunção da vida necessária a todos os homens, porque chega um momento em nossa vida que a gente tem que trocar de mulher, porque a parceira que serve para uma fase da vida não serve para outras. A menos que a gente não queira aprender nada ao longo da vida. Usando de um vocabulário muito inapropriado, passou a ilustrar alguns casos, com frases clichés do tipo “não vejo problema em comer uns aperitivos na rua desde que se jante em casa”. Lembrei-me imediatamente de uma passagem de “Cabine Individual”, em que ao ser indagado por Rosa dos motivos que levavam um homem casado a procurar outras mulheres fora de casa, Hélio teria respondido  desembaraçadamente:

“Para um homem, a boa esposa é como a água, necessária à vida, que não pode ser dispensada. No entanto, nada impede que, além disso, tendo a oportunidade de tomar um bom vinho ou uma marca de guaraná, ele queira provar esses outros sabores.”

Provavelmente o leitor também conhece mais alguém que veio do mesmo planeta que Hélio. No entanto, há controvérsias se Hélio era de fato o que Rosa pensou a seu respeito. Ele pode ter sido condenado injustamente por uma brincadeira que não avaliou chegasse a tais  consequências. Para Hélio, o mais importante no amor é que ele fosse submetido a provas que resistissem aos obstáculos circunstanciais. Tendo isso em mente, ele testou o amor de Rosa por ele antes de dar o passo decisivo que uniriam suas vidas. Helio, de fato, pelo que descobri em nossa conversa, origina-se do planeta Pleiggraum, famoso porque seus nativos são considerados brincalhões e parecem não saber os limites entre o que é verdadeiro e o que é sério na vida. Como um último teste para saber se Rosa o amava realmente, colocou um bilhetinho em seu paletó simulando um encontro amoroso com Cleusa, que teria sido desmarcado na última hora, e deixou o paletó em casa naquele dia ao sair para trabalhar. Hélio sabia que Rosa iria mexer no bolso de seu paletó, e ao ver o bilhetinho, colocaria em cheque a autenticidade do seu amor. Na noite anterior, ele tinha preparado tudo, inicialmente dizendo que chegaria tarde do trabalho e mudando de planos na última hora, como se tivesse levado um bolo da suposta amante e voltado mais cedo para casa. Quando chegou em casa naquela noite, constatou que Rosa não tinha passado no último teste do amor. Ela tinha lhe abandonado e em cima da mesa da sala estava o bilhetinho que tinha usado como umbral para a aceitação final do verdadeiro amor.

Quando Hélio abriu a porta do apartamento aquele dia, após um dia estafante de trabalho, achava que enfim seus temores tinham se desfeitos. Rosa era digna de seu amor e merecia toda a sua confiança, ao contrário de sua mulher anterior, a Marilza. Ao abrir a porta, ouviu o som da chave sendo arrastada pela porta. Achou aquilo estranho, era um mau presságio. Avistou ainda de longe, sobre a mesinha central da sala um bilhete. Pensou o pior, que seria um bilhete de Rosa dizendo que teria … não... era o bilhete de Cleusa, que ele tinha inventado, sobre a mesa, aberto, bem visível.

Vamos nos construindo ao longo de nossa vida, contando com os seres que podem nos ajudar nessa tarefa. A principal função do casamento deveria ser a de proporcionar o crescimento pessoal dos nubentes. Se não se fizessem tais prognósticos entre os seres, a união matrimonial deveria ser descartada, e apenas satisfações passageiras deveriam ser buscadas, assim pensava Hélio. Sua busca se revelou infrutífera ao longo dos anos até que ele encontrou seu parceiro prometido pelos céus, e que veio a ser alguém do mesmo sexo. Hélio se tornou homossexual a partir de certa altura de sua vida, e finalmente foi feliz.

Encontrei também Rosa, muitos anos mais tarde, e ela me confessou que ainda amava Hélio, embora não acreditasse que ele jamais tivesse amado alguém. “Ainda hoje correria a seus pés, se soubesse que ele me ama e não tivesse aderido à preferência por homens, como você afirma. Nós, mulheres, estamos sempre nos culpando, pela falta de diálogo, e cobrando dos homens, em momentos que eles não sabem nada”, foi a última coisa que me disse e que na hora pensei ter entendido.

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